Janela Poética I

Lilian Sais

 

Pintura: Cláudia R Sampaio

 

três da madrugada
amplia tudo

conheço de cor
o silêncio

palavras batem
no fígado

e estouram no céu
da boca,

mas não ultrapassam
a barreira

dos dentes
cerrados.

como larvas,

sambam sobre tumba
pretérita.

bebo uma taça
de vinho,

profundamente,

e meu olhar agravado
denuncia:

esse inventário
não está

completo

 

 

 

***

 

 

 

apenas por hoje:
não existir.

todo hoje é
provisório,

todos os dias
é excessivo.

os apelos são sempre
abandonáveis

mas quanto pesam as presas
do elefante?

as pálpebras pesam
o inverossímil

das manchetes.

apenas por hoje:
calar as urgências

e adormecer
(quase) em paz.

 

 

 

***

 

 

 

nascer em são paulo
sempre é prematuro,
começo da ponta
de um peso, buraco
que não é túnel,
que chuva não
inunda, que cheiro
de café não
preenche, edifício,
fístula, santo:
quanto maior a pedra,
maior o câmbio, traste,
a vida em ricochete,
uma cadeira vazia na sala,
uma corda que pende
(e a cortina
do quarto
está sempre
fechada)

 

 

 

***

 

 

 

não foi em troia
nem na rússia:
quando sucumbi
de grandioso só
havia mesmo
solidão & silêncio.
restava tão pouco de mim
que nem era possível
sair à rua.
três toneladas o cigarro
entre os dedos,
e nenhum choro ou grito
na despedida.
desisti de tudo, salvo
da saudade:
quando sucumbi
soletrei infância
em maiúscula.

 

 

 

***

 

 

 

todo dia acorda todo dia toma banho
todo dia escova os dentes todo dia a comida
e o barulho todo dia o despertador tiro certeiro
certeiro o tiro todo dia existir ser gente
existir todo dia deixa para amanhã todo dia
ler todo dia os índices mas não os capítulos todo
dia toma omeprazol em jejum toma fluoxetina dá azia
todo dia toma ácido valpróico pra ficar boazinha
todo dia toma risperidona que é antipsicótico
remédio de louco mesmo você toma
remédio de louco mesmo o psiquiatra disse
todo dia 2 mg antes de dormir todo dia
toma o remedinho que é pra você ficar boazinha filha
não achar que o quadro da sala tá te perseguindo
na rua todo dia não achar que você vai morrer
todo dia conseguir sair da cama todo dia
o dia começa com tiro certeiro todo dia
o despertador toca com urgência todo dia
todo dia hoje parece demasia todo dia a mesma coisa
nenhuma o despertador tiro de trinta e oito todo dia
todo

 

 

 

***

 

 

 

eis a vida: produzir,
primeiro apenas fluidos, dos olhos,
sistema excretor,
para depois mais,
produzir objetos, relatórios,
projetos, máquinas,
massa, fumaça,
nota fiscal paulista,
e inequivocamente produzir
também paixões, declarações de amor,
laços, lágrimas, silêncios,
e se nada mais der certo,
produzir poemas,
esse vício, essa mácula,
esse consolo torto
ao qual me rendo
enquanto em algum ponto
entre o quarto e o sofá
você exerce seu pleno direito
justo, inteiro e irritante
de não mais se lembrar de mim.

 

Lilian Sais é doutora em Letras e pesquisadora e tradutora da área de grego antigo. Paulistana de nascença e fumante assídua por opção, é também leitora voraz da literatura brasileira contemporânea e coeditora da revista Libertinagem. Tem poemas publicados em Mallarmargens, Revista Gueto, Saúva e Zona da palavra. Gosta de samba, cerveja e poesia e é defensora da boemia, de piadas ruins e das conversas descompromissadas de mesa de bar. Os amigos dizem que é uma peste, mas que cozinha bem. Ela nega.

 

 

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3 Comentários

  1. Lilian Sais
    O que dizer dos seus versos quando sinto que tudo o que eu queria era deixar a saudade…
    “na despedida.
    desisti de tudo, salvo
    da saudade:
    quando sucumbi
    soletrei infância
    em maiúscula.”

  2. apenas por hoje: não existir.
    a vida nos cobra coisas assim.

    gostei!

  3. Conhecer a vida na propositura da corda que pende e nos convida a prender o pescoço é, verdadeiramente, conhecê-la “por dentro”. Parabéns.

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