Janela Poética II

Elizabeth Hazin

 

Ilustração: Mario Baratta

 

 

Prometeu

Ouvi, porém, as tribulações dos mortais; ouvi como,
de parvos que eram, os tornei racionais e dotados de inteligência.
(…) Inventei para eles o número, a suprema ciência,
bem como a escrita que tudo recorda, arte mãe de toda cultura.
(Fala de Prometeu, em Prometeu Acorrentado, de Ésquilo)

 

 

I

Sou triste
desde o fogo impresso na argila:
odeio todos os deuses.

Minha tristeza vem desde o nome
a revelar-me  a sede
a fome
a farsa que me corrói a face
nua.

Não quero essa alma que me queima:
de  barro estava bem.
Arde em meus olhos o desejo dos deuses
(como o dos homens).

Não quero a palavra
acesa
que à minha revelia me incendeia:
de repente
é impossível  restar calada.

Desde o fogo
a tristeza nos consome.

 

II

Só há um fogo
– um fogo único –
capaz de arder no poço
mais fundo
em mil chamas:
é a alma
que se derrama
do corpo.

Tudo vem do fogo
e a palidez da face
contra a água escura
acende a chama
em que arde
essa alma.

Curvada sob a luz
e a  mágoa de ter alma
persigo símbolos
na água
que se transmuta.

 

III

A alma do homem é tudo que
– não sendo –
é chama ardendo
sobre o verde
insondável
do oceano.

A alma do homem tem seu encanto
mas é nada
e sobre esse nada
não flutua a esperança.

A alma do homem veio tarde
quando o  corpo já aprendera a ser sem ela
e já não era possível desaprender.

 

IV

Condenam-me ao silêncio mais cruel:
o silêncio da alma
enquanto a pegada do corpo
fica impressa no chão.
Não falar é a pior tortura.

Falo dessa fala
própria da alma
que os deuses temem
pois jamais se cala
e continua
queimando o corpo
lentamente com sua chama.

A toda palavra que sai de minha boca
longe longe
responde o vento
com a mesma fria palavra
que me devolve
a sombra apenas
do que penso.

 

V

A alma é tão-somente um fogo
vívido e chamejante
crestando a pele do corpo
– veste
de  que ela própria se reveste.

Mas esse fogo é tudo
pois sem ele
o corpo se estiola:
folha vermelha que torna
inevitável o outono.

 

VI

Há algo de mais belo sobre o fogo
e primitivo
como presságios dardos e correntes.
Não há cadeias
em  torno de meus pulsos e dos pés
– belos mortais –
se arrastais vossos vultos sobre a areia.

 

VII

O quê receiam os deuses
de quê têm medo?
O poder é negro
…………………………………….negro
águia cruel
que mergulhando em meu corpo
sangra o rochedo.

O quê receiam os deuses
o quê receiam?

Do pico dessa montanha
me  arremesso:
sou o espaço
sou o pássaro
sou o rochedo.

 

VIII

É turva ou cristalina
a água que não bebo?
Meu corpo é o rochedo
……………………………………..é o rochedo
………………………………………………….é o rochedo.
Trinta séculos de tortura não são
trinta manhãs com suas tardes:
outras águias nascerão de toda água
mais escura.

O quê receiam os deuses?

 

IX

Só o mar me desvia desse monte
em  que não durmo
se ao menos o dia amanhecesse
por sobre meu corpo escuro.

Mas sei que de manhã
o sol se espraiará todo em meu corpo
– pássaro a me devorar inteiro –
e eu desejarei a noite.

 

X

É de sol
o pássaro dos  deuses
e suas asas me cobrem
asas de sol.

O pássaro dos deuses
chega com a manhã
e me faz jorrar o sangue
das entranhas.

O pássaro dos deuses é puro fogo
e renasce a cada manhã
das cinzas da véspera:
de meu próprio corpo.

 

XI

Há, sim, quem se lance ao fogo
pra morrer de todo
e nascer de novo.

 

XII

Sou o sol
sol de fogo
todo dia
sempre novo

sou o fogo
todo sol
novo dia
sempre sou

sou o dia
sol de novo
todo sou
sempre fogo

 

XIII

Há mais dor nos olhos dessa águia
que em meu corpo
estilhaçado:
os deuses não cessam de vingar-se
– todo poder recente é implacável.

Há mais fogo nas asas dessa águia
que em meu corpo
incendiado:
ígneas criaturas
vossa tolice é suprema.

Quem romperá de vez essas cadeias?

 

XIV

O tempo que passa me alucina
– às vezes penso –
sombra que escurece a minha face
esse veneno
é a própria água em que debruço
a minha sina.

Só existo enquanto acendo o sonho:
o sonho infindo
que o bico de uma águia estilhaça
toda manhã
em vão. Recomeço pois não receio
ira ou  destino.

Que se vinguem os deuses (ó deuses)
nesse meu corpo
que não morre pois conhece o fogo
e sua chama:
sou pássaro a renascer das cinzas
ou salamandra?

 

XV

Ó misterioso ato de criar:
como fluem as palavras
as palavras que tudo recordam?
Não me podeis matar
eis a  verdade
a grande verdade
que cinde essas correntes todos os dias.
Minha ousadia
é bem  maior que meu suplício.

 

(Elizabeth Hazin (Recife-PE, 1951). Publicou Poesias (1974), Verso e reverso (1980), Casa de vidro (1982), Arco-íris (1983), Espelho meu (1985), Martu (1987) e O arqueiro e a lua (1994). Em 2006, a Vieira & Lent reeditou uma segunda edição — revista e ampliada — de Martu, livro vencedor do Prêmio Rio de Literatura (1986) e foi publicado  Lêgo & Davinovich (7Letras) escrito a quatro mãos com Davino Sena. Em 2010, a Vieira & Lent republicou Arco-íris. Já ensinou nas universidades federais de Pernambuco e Bahia. Atualmente, é professora de Literatura Brasileira na UnB – Universidade de Brasília)

 

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