Janela Poética II

Luiz Brener

 

Arte: Leonardo Mathias

 

Das vantagens da ficção

 

Como de costume,
sem ter hora ou ocasião,
a verve me espreita
os sonhos mais sórdidos.
Ela se debruça sobre mim
e com seus lábios melífluos
me beija
ardentemente.
Somos o próprio caos.
Depois de algumas horas de
gozo trocado,
eu, ainda distante de mim,
me lembro de Dulce,
a bibliotecária que lambe
dicionários.
Recordo-me também de Agenor,
o velho que cultiva bonsais
em torradeiras.
Me vem a mente, por último, a persistência
de Hugo, o menino que empilha grãos de arroz
com um apuro sobrenatural.
O que
por acaso
nos aproxima
é justamente
o fato
de que sonhamos sozinhos.
O que
curiosamente
nos mantém ligados
é  aquilo que
nos denuncia.
A consciência de que meu eu
só existe em lírica
não é um incômodo.
Muito pelo contrário,
é o que
dá ao meu aglomerado de células imprecisas
alguma verossimilhança.
O mundo seria ainda mais infindável
se todo espírito pudesse desfrutar do
prazer
de
inexistir.

 

 

***

 

 

Como fazer

Aos companheiros ourives Renato Silva e William Delarte

 

Mantenha
em território livre.
O recomendável é que se
refugie na parte da cabeça onde
a verve
nunca anoiteça.
Regue de três em três instantes,
com choro, suor, sangue ou qualquer
outra fagulha humana.
Se possível,
acenda um incenso.
Não são poucos os que apregoam
que o gesto confere ao objeto
um certo ar de efeméride.
Não se preocupe
em lapidar.
Não se deixe assombrar
por devaneios quanto
a forma.
O único desejo que deve prevalecer
é o de que
a joia floresça.
A coisa estará perto de se concretizar
quando estiver menos matéria sólida e
se tornar algo fino.
Mas ainda assim tão tátil
quanto o próprio vento.
E, por fim,
para assegurar
a garantia
de todo o processo,
sem remorso ou indecisão
você deve
atirar a pedra
no meio
do
caminho.
Observação pertinente: você deve atirar
a pedra
no meio do
SEU
caminho.

 

 

***

 

 

A aranha

 

A aranha,
sempre humilde tecelã,
constrói a própria cama.
Eu atiro-me a minha
sem contestar sua
origem.
A aranha, essa decorosa mãe,
faz da cama
berçário para
acomodar sua
numerosa prole.
Eu abrigo na minha
pesar e ossos cansados.
A aranha, sábia raposa,
sabe que sua cama também
é engenhosa
armadilha.
Eu deito na minha, certo
de que é um santuário
de sonhos concernentes.
A aranha, sempre inventiva,
também faz da cama
um modesto refeitório.
Eu me vigio pra não manchar
os lençóis da minha.
A aranha, indubitavelmente,
sabe se virar.
Eu só durmo de bruços.

 

 

***

 

 

Sob nova direção

 

Herdei do velho dono
uma coleção de LPs
e um cão de olhos gastos.
O quadrúpede choraminga
toda vez que a vitrola evoca
a voz de Joplin
ou a juventude inesgotável
dos Besouros.
O cheiro de incenso perdura.
Há dezenas de pinturas mal-acabadas.
Tentativas frustradas
de autorretratos.
Nada é igual.
Nada é unânime.
Tudo se condensa de forma que
cada um dos arredores percorra
uma ala do coração do
antigo inquilino.
Cada um dos móveis,
cada peça que compõe a mobília,
tudo reverbera a falta.
A saudade é um hino estridente
que ressoa de forma violenta e é
cantado por cada um dos tijolos que
integralizam a ossada de
minha nova residência .
As inúmeras infiltrações soam
como veias puídas
que pulsam lembranças
em tom de sépia.
Eu, tão ausente, quanto
o avoengo proprietário
destoo desta alvacenta cenografia.
Sou elemento sobressalente de
uma plástica já sacramentada.
Um fio de azeite temeroso
em meio a um oceano de decomponível
quilometragem.
Não tenho feito nada a não ser
esperar.
Sonhar com o dia em que, finalmente,
hei de me habituar
à maneira indecorosa
com que esta casa
respira.

 

 

***

 

 

Visita

 

Servira-me uma dose
generosa
de uísque na xícara.
Corria pelos seus aposentos
ilustrando seu vigor com
gestos efusivos.
Entoava de novo seu
cancioneiro de
auspiciosos
anexins.
A. estava feliz.
Na poltrona,
o acordeão.
Ao que consta,
ele fora recobrado.
Partituras se acumulavam
pelo chão a exemplo de post-its
de toda a sorte de cores
nas paredes.
Minha querida A. dispunha
de um vestido amarelo.
Imitação original da luz do dia
e tão radiante
quanto ela própria.
Valsávamos incautos ao som de um
de seus blues.
Quando, por alguns breves minutos,
ela se ausentou
me aproximei de um
dos coloridos memorandos
que vestiam sua alvenaria.
Em todos eles
estava escrita, com a mesma delicada
caligrafia,
uma audaciosa máxima: o câncer
não sobreviverá
a mim.

 

 

Luiz Brener nasceu em Caraguatatuba/SP em 1994. Segundo a cultura de prognósticos, o mês e a hora exata de seu nascimento indicam que ele é capricorniano e o seu signo ascendente é o de peixes. Em outras palavras: Luiz é um obstinado sonhador. Publicou nas antologias literárias O Segredo da Crisálida e Entrelinhas-Vol.2, ambas da Andross Editora. Fotogramas é seu livro de estreia e integra a Coleção Patuscada, premiada pelo ProAC- 2012 – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura.

 

 

 

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