Janela Poética II

Dheyne de Souza

 

Arte: Marcantonio

 

Quando eu digo saudade e sinto outra coisa

 

vezes caminha em mim uma saudade que é um pouco arredia, um pouco insolente.
Ela vem com esses passos de noite como quem acorda um escuro.
Ela toma a mão dos meus sonhos e começa a cerzir metragens curtas.
Como se minha vida fosse uma fita me fita, essa memória meio insalubre, com os seus olhos de carpir montanhas. Com esses olhos de um tema curvo. Com essa displicência do momentâneo. Paisagem que dorme sem leito.
Mas não é sempre que me toca a pele esse vestido leve de sentir o peso.
Muitas vezes querendo que me perca me bato me espanco me ergo me enleio sentindo saudade desse modo específico de sentir falta.
É que ela me espinha o passado.
É que ela me aborta o presente.
É que me faz esquecer de ser para lembrar o que podia se fosse.
É que ela me ensina a ser forte, a ser grosso, a ser firme com seu meio ríspido de me tirar daqui. Com o seu gesto insípido de me lembrar que o instante é tudo o que tenho e deixo. Com o seu freio de desapego. Com o seu jeito, enfim, me devolve praticamente ileso.
Assim. Tem dias, confesso, que me pega bem preparado e eu lhe chamo de nomes bem feios – da forma que eu consigo dizer, que nunca fui muito afeito a maltratos. Mas digo mil coisas vis. Minto que esqueci de todo o berço. Grito que tenho costas limpas. Urro que no meu olho há cílios secos. Corro tanto a lembrar o quanto sou que tropeço e quando me aqueço azulejo já nem ri.
O que eu dizia mesmo?
Que às vezes ela não pisa nos meus medos.
E eu fico assim em vigília.
Eu fico assim dia a dia.
Sabe?
Eu vou ao supermercado e compro uma bala azeda.
Eu corto o cabelo em outra.
Eu rio uma piada negra.
Mudo de endereço. Danço. Corro.
Vou à academia louco a levantar esses pesos.
Bebo.
Mas ela me assiste em uma poltrona macia. Porque sabe que quando sento, quando meu olho esbarra na janela, que pena.
É uma ressaca pelada, sabe?
Assim meio desencapada.
É quando falo com meu cigarro.
Quando me abro com um café, me banho um blues.
Quando tenho alma feito desmaio.
Olhando buracos.
Catando sílaba.
Medindo o vácuo.
Sentindo uma saudade oca de senti-la.

 

 

Dheyne de Souza está em Curitiba, escreve poesia, prosema, caos e guaritas.

 

 

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