Janela Poética II

Marília Garcia

 

 

Do outro lado da tela

 

I.
acontece de estar
num deserto de estar num
lugar inclassificável ao vê-lo
cruzar a praça arrastando
uma rede árida de memória no
momento em que o apito marca
os passos e você levanta a mão
para falar
……..como se precisasse
de um impulso ou se dissesse
que hacen falta los subtítulos
al hablar. nesse instante
busca se fixar em todas
as cores antes de dizer
……………………mas vê apenas
uma mancha ocre – então
não reage, olha a cabeça erguida
e a dele em semi-círculo fazendo o
contorno
…………….(parece estar em denfert
de noite: chove o suficiente e o guarda-chuva
grená é pequeno, não cabem apertados ali embaixo –
embora recolha os dedos para caber –
corre para comprar um despertador
e ouvir as histórias da distância
para chegar a polônia
……………………..num dia branco.)

 

II.
a menina da livraria subterrânea
pergunta a que horas sai seu voo
e você não responde – recolhe as miradas
persecutórias e sai mudo, mutismo
é isso sim nem pode imaginar de que lado
estão ou de onde escrevem todas as
vezes. também não há como saber de
onde saem tantas luzinhas porque é
o máximo que já esteve
do outro lado
……………….do oceano: o máximo
de distância através da tela, a imagem
embolotada que tenta chegar
mas é lento e cortado, um filme
antigo sem voz

 

 

***

 

Escorpiões e a esquiva

 

pela quarta ou quinta vez
tenta dar uma cronologia: me
deitei e parecia um deserto aquela
areia salgada.
………………– mas estamos em méxico city, diz,
estamos no ponto mais próximo
da esquiva.

eles vêm de noite, no campo,
quando uma nuvem se forma
e tudo está perdido. rente ao chão.
me deitei e tratei de ouvir os ruídos
dos escorpiões

mas não havia ruídos,
só o vento e os clarões.

tratei de ouvir
o barulho da fábrica
mas não ouvia nada
(conhecer pode
ser destruir)
só um eco ou
algo que
se esquiva.

 

 

***

 

 

Codecs

 

I.
estar em contato durante
um trânsito mútuo é diferente, não conta
porque ainda não tem
uma resposta.
………………apenas se fixa na estrada
e segue conduzindo as esteiras. não
sabe se ela gosta de olhar para
aquelas fotografias do deserto
em p/b. se gosta de escutar
o som dos escorpiões que só
existem em sonhos e se
vai no próximo verão a nigéria
dizendo apenas: saibro.
………………se faz parte de uma salina
o que parece imaginar. não diz onde
está agora, apenas
aguarda
………que voltem dos bosques gelados
que sigam juntos até terça
que se digam adeus –  a voz
na chamada não esclarece
e depois de achadas as pistas não
tem volta:
……………..eletricidade constante
em tudo o que via. deve pensar
em coisas objetivas: pequena
placa esmaltada na entrada com
o nome da rua

 

II.
pode ser um peixe russo em
extinção, até que chega. mas isso
não explica. é agustina ligando
do continente, dizendo as coisas
pela metade. mas não há como saber: “aperte
o botão da direita e pegue um pacote de codecs
eles ajudam a ver imagens, definir
o campo de visão”. sem ele não
vê nada, acorda virada para o fundo
gelatinoso do rio e passa as horas
aguardando como um problema
sem resposta: é uma ilha tão pequena
que quando não espera
despenca no mar.

 

 

***

 

Classificação da secura

 

I.
agora já é quase amanhã mas queria
dizer apenas que é muito
tarde: acrescentar quatro horas ao relógio
indica que já é depois. lá é sempre
depois. parecia um nome
italiano com aquele som ecoando e a
resposta em outra língua mostrava
a cor das linhas no mapa,“é lilás”, para
não dizer algo preciso
para não terminar: com ela
saio cedo todos os dias. fico de
vez em quando escondido
no porto. tomarei
o transmediterrâneo e comerei
calçots,
……….até chegar o instante antes
do instante, momento em que vê o relógio
e diz: não. já conhece todos os erros
do sistema e a retina derretendo
sempre que levanta
………………………para sair dali.
(precisão é o retângulo do degrau
inferior.)

 

II.
alguém que não consegue se mover
e uma semana de vozes cortadas, deve
se acostumar aos movimentos em câmera
lenta, à descida pela escada em
espiral:
……….recorta os sons de cada
quarto e apaga as perguntas que
mais detesta responder. como aquela
noite no ônibus, ruídos do rádio e
pedaços de frases atiradas,
sempre girando as horas.
……………………..ver a paisagem
sem ela e precisar o tamanho da ausência
com poucos dados – sabe que as baleares ficam
do outro lado do mar, que custa chegar
anos depois e dizer. ergue os olhos para
fixar o que tem ali e não perder
de vista a secura.

 

Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro (1979). É autora dos livros 20 poemas para o seu walkman (Cosac Naify, 2007), engano geográfico (7letras, 2012) e um teste de resistores (7letras, 2014, no prelo). Atualmente, mora em São Paulo e trabalha com tradução.

 

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