Janela Poética II

Cazzo Fontoura

 

ricardolaf

Foto: Ricardo Laf

 

Arranjabuso

 

Para Antônio Abujamra

 
palco é precipício
passo raso falso risco
quando possível
incerto e plástico
de impacto previsível
ou talvez
dor inteira
no instante mínimo
em que se faz laica
………………….a vida
entre risos, rumores,
vaias, choros, mitos,
é ainda assim
o silêncio interno
fingir explícito
a múltiplos cúmplices
e por fim
sedento de aplausos
o pé tão firme
em chão descalço
exige de si
o alívio, o delírio
de ir além do recuo
– à queda imprescindível.

 

 

***

 

 
Leitura neon-reciclada

 
Despetalo
do olfato
o gosto pelo cheiro
de livro velho
livro novo
e adapto-me
a um novo formato
do qual a brochura
– outrora
imprescindível
enfeite cabível na estante – já ñ vincula páginas
pq hj
discorro os olhos
sobre a luminosidade
………agressiva
sem cheiro ou tato preenchido posto q a matéria
ñ mais palpável
morre
imune
a rabiscos riscos
dobras rasuras
fixada que está em tela
luzes cliques

 

 

***

 

 

assim é caetano
vez ou outra
..amargo
avesso a quase
…..tudo
e até no papo
solto
que se bate
qualquer murmúrio
uma frase.

amar
..o caetano
dom de poucos
pq difícil
separá-lo
da arte
tragá-lo
sem som
deixar o público
……sujeito
à parte.

e quando cai
caetano
no júri moral
do populaço
o que fora amado
em singelas canções
sofre agouro
…..inflamado
de quem detesta
quando ele testa
numa ideia
num compasso.

preferem vê-lo
ao mar
naufragá-lo
para se houver
talvez braços

achar ilha
em que se ache
[isolá-lo]
ver o caetano
delirado
mirar-se n’águas
a perguntar:
e pq não amá-lo?

 

 
***

 

 

Quentura

 
Esta quentura
suor e queimaduras
q o sol impõe e apavora
nos dias de verão
só não me causam
o subversivo gosto
de reivindicar
paulistanas garoas
ou horário marcado
….preciso
das chuvas q assolam
Belém do Pará
pq a luz q irradia
em Salvador
torna suave
meu olhar cansado
nas esquinas
de onde brotam
seios
quadris e coxas
q me convertem
o ensolarado grito: “Não acabe na mulher a menina
………………………….– Deus queira: a deleitosa estação
………………………….– nunca termine.”

 

 

***

 

 

Sem brechas para Brecht

 
Ter a irresponsabilidade
de Dalton Trevisan
– sem a necessária Curitiba –
é mais revolucionário que a bandeira de Brecht.

O cinismo urbano de Machado de Assis
é infinitamente mais oblíquo
que qualquer personagem proletário
de Brecht.

Até mesmo a proposital podridão de Bukowski
fede mais que os uniformes nojentos
dos dramas de Bertold Brecht.

(tudo,
pisando a grama,
como quem não sabe de placas).

 

 
***

 

 
Ofício

 

poesia é ofício de alto risco
que aos dedos do poeta
sofre embaraço
do inacabado esboço
teimosia do diamante
…………quase pronto
sempre apto a ser lapidado
ou por desacerto
súbita menção a dilacerá-lo
lançar sem pudor
todos os versos ao lixo
pelo nobre motivo
do eterno recomeço
– nunca desperdício.

 

Cazzo Fontoura é poeta e escritor; escorpiano corrompido; pai de João, filho de Eva, tem uma mulher que é só dele; publicou um livro de poemas: Leitura neon-reciclada (editora organismo, 2014) e um de crônicas: Anticarta de Dona Lúcia – crônicas da fatídica copa do mundo no Brasil (Amazon, 2014); assina hoje o projeto Selfie Poesia (entrevistas com poetas), no youtube.

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