Janela Poética II

Adriana Versiani

 

Helena Barbagelata

Arte: Helena Barbagelata

 

Misericórdia

 
Jandira sorri para os meus olhos opacos.
Abstraio.
A..M.A.R.E.L.O:
a cor preferida de Van Gogh.

Toda manhã,
Ameixa esquecida na árvore à espera do vento,
..Ela.
Palavra antiga brotada sozinha na terra do quintal,
curiosa dos meus sonhos,
Vem
saber da algazarra das cigarras, dos girassóis da Holanda,
do pigmento que colore a tela.

A escrita racional de Jandira arranca o mato que cresce no canteiro de hortelã,
mata todas as formigas do formigueiro e não gosta de metáforas.

Jandira oxigena o ar do quarto com a serenidade de seus dentes brancos
Os dentes brancos de Jandira não querem saber da morte.

Meus olhos opacos boiam na água da pia,
quando Jandira fecha a porta.

 

 

 
***

 

 

 

A Louca e o Cinzel

 

Para Maura Lopes Cançado

 

 

Mais uma vez, uma voz doce convida para a descida:
– Venha Maura, você é linda é uma flor, é minha menina!
Venha me beijar a testa e aquecer com o bico do seu seio o dorso da minha mão fria!
Venha Maura, você é linda, é uma flor, é minha menina!

Primeiro o crepúsculo, depois a angústia:
De onde veio a palavra
Hos-pí-cio?
Nem quando tudo manifesto:
os muros, o arame farpado, os azulejos brancos da enfermaria,
nada sossega a falta que ela resume.

O nome, a noite, o sexo.
A pedra da loucura tocou de leve minhas têmporas, desceu pela maçã do rosto e com som oco perfurou minha clavícula.

O gosto do álcool experimentei na sua boca, pai!
Devagar tirei das casas os sete botões.
Depois vertigem e o desejo de manga madura roçando a carne dos meus dentes.
Mais álcool, mais sete casas se desfazendo dos botões.
Sei o travo do sal na língua quando penso a palavra hospício, mas ela não diz os azulejos brancos da enfermaria, as injeções, os remédios coloridos.
– Venha Maura, venha caminhar no pátio e ouvir comigo o som dos bichos!
Você é linda, é uma flor, é minha menina!
O ritual da morte do porco não me diz.
Os guinchos que ele solta sua pele rosada, as marcas de sangue na faca, a separação dos pertences, a sobra…
N A D A
A concretude da palavra
CITO,
não
DIGO.
Para além das grades da janela,
NADA

Os azulejos da enfermaria guardam a suprema forma de escrever.
Sufoco minha vítima com o travesseiro:
o poema escolhe para si a melhor forma de morrer.
Pedra da loucura que dobro e é recortada, que afio e pelas coisas é afiada.
Raposa nos campos do Senhor.
Gozo no tatame,
grafito o tapume,
escondo as provas,
dentro dos sacos de lixo.
-Venha Maura!
– Ambígua, sou prosa e sou poema.
– Venha Maura!
– Sou força e sou sistema.
– Venha Maura!
– Eu , Maura, sou escrava da sintaxe e do desejo.
– Venha!

A etimologia, o sentido, o equilíbrio, mais uma dose,
sou escrava.
Além das grades:
mar sereno,
relva,
alimento.

Eu , palavra impura
Eu, meu delírio
Eu, matéria turva
– Venha Maura!
Venha memória, crista do cristal, carne da carne da palavra hospício, carne da carne da palavra sentido, carne da carne da palavra palavra, carne da carne da palavra ofício, carne da carne da palavra azulejo, carne da carne da palavra .
Venha !

O real não me substancia,
sou Maura,
a fibra que envolve o fio no poste que ilumina a rua.
Enredei-me de Deus, estou nas vísceras do porco.
Peço vistas ao processo que se dobra sobre mim.

Eviscerada, não ouço o meu próprio guincho, não vejo dor no sacrifício, quero jogar esse avião no chão e ser terra, verme, adubo nas plantações do meu pai. Meu pai, corda tênue, casa dos sete botões que me alimentam. Por isso fico nua. Já me foi concedido falar, então FALO. O resto é a pele rosada do porco e o mistério refém dos azulejos. CALO.

Palavra por onde desliza frenética a minha língua má que anseia por seu guincho.
Escrevo com tinta e vomito sobre a textura do que foi dado.
Sei bem o travo do sal nos lábios.
Descortina-se o mar e o mar é dentro de mim.
Bato com a mão no fundo e bebo os organismos minúsculos que vivem nos arrecifes.
Não era minha intenção despertar.
A vida tornou-se grande e apertou o nó da corda que trago presa ao pescoço.
Por amor sou capaz de matar.

Matei.

 

 

 

***

 

 

 

Herança

 

 

I

Tudo que havia para ser dito, já foi dito.
Sentada em frente à escrivaninha que pertenceu ao seu avô, Adriana dos Anjos pensa na palavra vísceras.
Na biblioteca as flores são trocadas todos os dias e não importa se crisântemos ou rosas. Flores continuam flores e o importante é que estejam frescas.
Adriana dos Anjos tem paladar apurado e está sempre atenta ao movimento dos insetos e ao cheiro de mofo que os livros exalam.
Com muito esforço consegue se lembrar da salada de frutas que comeu ao meio dia, mas exposta, é capaz de sentir o cerne da palavra vísceras.
Sentada em frente à escrivaninha, diariamente, vê as flores serem trocadas e ouve o som das traças desenhando mapas em antigos romances.
Não vai dar em nada, a Adriana dos Anjos.

 

II

Vivo nesta casa com Adriana dos Anjos.
À minha frente vejo um vaso de ervas mergulhadas em água.
Sonâmbula, Adriana dos Anjos fala em línguas:
há três séculos acordo assustada com seus gritos.
Ela está sempre comigo e ontem parecia feliz.
Hoje, dorme para sempre.

 
III

Envelhece Adriana dos Anjos, em meio à azáfama.
Engole o turbilhão e transpira o líquido da sua má digestão.
O vento depois da vidraça e tudo que havia antes já foi dito.
Sobre ela, a única coisa que precisamos saber é que a encantam as pontas dos lápis.

 
IV

Neste quarto onde me visto com Adriana dos Anjos, volto ao sonho de intuição e beleza.
Com um caco de vidro, disseco os músculos do seu pescoço.
Sou as flores mergulhadas no vaso e ela, seiva indeterminada em minhas veias.
Sei que tudo que tinha para ser dito, já foi dito.
Restam-me apenas cem palavras.

 

V

Desde que desistiu da multidão, Adriana dos Anjos se finge de morta no coreto da praça.
Escondidos no vestido, guarda as agulhas de tricô que recebeu de herança de sua bisavó e um estilete para apontar o lápis.
Enquanto sonha, bebe água da poça e come as folhas amargas do cipreste.
Fingindo-se de morta, Adriana dos Anjos dança descalça sobre as brasas.
Os mendigos se recusam a beijá-la.

 

VI

Com Adriana dos Anjos busco pelo escritor americano no parque da cidade.
Suas pegadas nos guiam.
Paramos uma ao lado da outra, em frente à sequoia gigante.
Eu não vejo Adriana dos Anjos.
Adriana dos Anjos não me vê.
Nenhum som nos nossos corpos.
A “sequoia gigante” é apenas uma palavra composta por duas imagens.
O escritor americano segue pela trilha armado com o estilete que Adriana dos Anjos usa para apontar o lápis.
Grafo esse bilhete na carne da árvore, para que o veja o escritor americano que está aqui, atrás de mim:

“A canção da sequoia, estranhamente, mesmo que muito antes, não me remete ao escritor americano.
A canção da sequoia, estranhamente, mesmo que muito antes, esquenta meus dedos na brasa do fogão.”

 
VII

Por algumas horas, olha para a xícara que sua mãe trouxe da Jamaica.
A xícara que sua mãe trouxe da Jamaica é de louça japonesa e nela há a imagem de um camelo e de uma pirâmide.
No pires que acompanha a xícara há a imagem de um camelo, de uma pirâmide e de um coqueiro.
Adriana dos Anjos aponta o lápis faber castel número dois com o estilete que guarda dentro do vestido e despeja leite na xícara.

 

VIII

Nesta escrivaninha onde sinto meus nervos a flor da pele, Adriana dos Anjos folheia o antigo livro de química orgânica que herdou de seus ancestrais e escreve compulsivamente.
Não se lembra da última vez que lhe beijaram a testa antes de dormir.
Tem ossos de vidro Adriana dos Anjos, que tenta afinar a ponta do lápis para que fique da espessura de uma agulha.
Teimosa, fere o pulso com o estilete e não derrama lágrima.
Ao meio-dia, abre a porta da geladeira.
Tem muita fome a Adriana dos Anjos.

 

(Adriana Versiani dos Anjos é mineira de Ouro Preto. Tem cinco livros de poemas publicados, dentre eles, A Física dos Beatles (2005) e Conto dos Dias (2007) e o virtual Explicação do Fato (2008 – Germina literatura – Revista Virtual) e Livro de Papel (2009). Foi co-organizadora da Coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. Fez parte do conselho editorial da Revista de Literatura Ato. É editora do Jornal DEZFACES)

 

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