Janela Poética II

Lívia Natália

 

Patrick Arley

Foto: Patrick Arley

 

Eu nadaria no teu suor

 

e seria sereia encantada.
Eu, montada no lombo do seu grosso navio,
meu Odisseu,
nada em ti cessaria de querer,
nem tuas mãos atadas.

Eu cantaria macio,
com a carne da minha entrega
uma canção de fêmea na sua orelha
e das águas de teu suor geminariam insutilezas.

Na deriva de um quarto enorme,
navegaríamos a cama pequena.
Enquanto os lençóis, de pura onda,
Imitam o tecido das estrelas.

Sem rota, bêbados de maresia
nos acharíamos pelo cheiro
no faro puro de que é feito o desejo.
Eu cantaria esta canção antiga,
encantadeira,
enquanto destroços de sua boca caminhariam
……….pelo meu corpo
tangendo novos naufrágios.

 

 
***

 

 

Confissão

 

Tenho medo deste meu coração de Água.
Há nele tanto peixe ligeiro,
Miuçalha de ondas por cima.
Tenho medo, por que as ondas param,
E eu mato, sem medo, o ligeiro dos peixes
Devorando suas guelras.

Tenho medo deste meu coração de Água
Que molda pedras macias.
Temo pelas pedras que moram nele,
Por que sei que viro lâmina afiada
Que fere a pedra.

Tenho medo pelas plantas pequenas que se trançam nas bordas,
Pelos peixes famintos que atravessam minha pele
Até pelas oferendas que colocam a meus pés,
Eu temo.

Temo por que sou rio, e meu caminho é desaguar.
Penso nas embarcações que me atravessam,
No pescador todo feito de peixes
que eu conquistei sem nem cantar
Penso em virar seu barco no meu meio mais profundo
Lacerar sua pele de homem, com meus dentes de nada,
Dar a ele a respiração de afogado, que só eu sei dar
E seguir, andando sobre meu próprio corpo
Com os meus olhos prenhes de mar.

 

 

***

 

 

Desamparo

 

Os filhos são feitos de partir
e toda casa é feita oca para sua ausência,
e grande, para que se percam

Parido, o útero silencia,
implode,
e das constelações que abrigou enorme,
nada vive que tenha sido estrela.

 

 

***

 

 

Ausência

 

Como se tece o amor, este manto fino?
Que fazer dos dedos feridos pelo gesto repetido de amar?
Quarenta dias acordaram para o vazio,
quarenta noites abrigaram silêncios.
Nenhum barco atacava, nenhum trazia você.

Sua alma dura

Meus dedos finos, de carne e sangue vivos
Os olhos secos: lágrimas impossíveis.
Que fazer do amor, deste sacrifício,
desta faca pura lâmina que morde minha carne?

 

 

***

 

 

Antes que chova
(Último poema)

 

Antes que ele venha eu já sou feliz.
Se ele vem às três da tarde,
eu já amanheço iluminada
pelo por vir do tempo,
e as horas caminham languidas enquanto eu me banho,
perfumo e me preparo
para sua chegada.

Ainda antes que ele chegue
Meu corpo está calmo e prenhe de sua presença.
E quando ele chega, eu já estou
Luminosa pelo fim da espera.

Antes que ele chegue eu já sou mulher,
Sou inteira e nada me aparta de mim.
Ele a mim se acrescenta,
onde nada falta.
E este excesso de aço e negrume,
estes brancos que se desenham
em barbas no seu rosto
esta boca de libélula nas minhas madrugadas
a mim se somam.

E apenas por que sou inteira
ele vem completar-me ali,
onde nada falta.
E o afeto que tange nossas almas
nos emancipa e dilata
como se o amor pudesse

 

 
***

 

 

Insurreição

 

seria mais fácil não amar os pessegueiros macios
e nada sorver do seu perfume,
mas os meus dentes querem a carne do seu corpo,
minha língua deseja lamber do seu sumo.

O certo seria plantar a semente e esperar,
dos laços e nós dos caules finos,
aspergir-se o perfume da fruta vindoura.
mas meu corpo tem pressa
e não respeita os relógios que inventam o tempo.

Minha natureza é temporã.
Eu sou das fêmeas que vão!
Ficar é para quem tem raízes,
ceder é para quem deseja morada: eu sou o desabrigo.
quero a fruta furtada do pé.
comer seu gosto ainda verde,
morder suas entranhas ainda duras.

não sou das que esperam,
Sou das que não querem nem chegar,
Sou de partir e, no precipício, ainda ser silenciosa,
inteira.
Sou uma destas mulheres que vão.
ficar é raiz.
partir é imensidão.

 

Lívia Natália, sou baiana de Salvador, poeta e contista. Escrevi o livro de poemas Água Negra, 2010 (Prêmio Banco Capital de Poesia) e Correntezas e outros Estudos Marinhos, 2015.  Sou doutora em Teoria da Literatura e professora do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia.

 

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2 Comentários

  1. Quantos poemas bonitos! Parabéns!

  2. Fico sonhando, nessa imensidão poética. Parabéns!

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