Janela Poética II

Helena de Andrade

 

Pintura: Cláudia R. Sampaio

 

Sangue

 

Essa urgência
acomodou-se ao redor das unhas
nas costuras de todas as roupas
paira como poeira levantada
Goles de ansiedade pela manhã
excretadas pela urina à noite
o motor é a esperança de que nada permaneça
mas os pés cimentados
Cinco litros bombeados
oxigenando cada partícula cismada
Universo derramando-se sobre a cabeça
escorrendo pelos braços
pingando dos dedos

 

 

 

***

 

 

 

Insones

 

É tarde
Enterraremos um ao outro
à sombra do esquecimento
Teu universo aflige
atordoa as certezas
Quisera a sinceridade ampla
É tarde
o tempo haverá de fechar as noites
Desejo que parta imediatamente
furte a ousadia
Aceito o desamor
à luz do passo do teu compasso

 

 

 

***

 

 

 

Pele

 

Atrai o que há por baixo da pele
Entre ossos e músculos
raivas incontidas
prazeres descabidos
Atrai o passado
martelado na cabeça
imoralidade dos erros
ideias frouxas
O que desejo está onde reside
a tua vontade
por dentre entranhas
Anseio pelo que vai atrás dos olhos

 

 

 

***

 

 

 

Trem em curso

 

O trem leva ainda que eu resista
Quando desce o morro desvairado
por pouco não me cospe janela afora
Cabelo ventado vedando a boca
fiarada adentrando as narinas, pintando o rosto de caracóis
por vezes, súbita felicidade
mas vertigem
Será implacável o tempo
há tantos cursos entrelaçados, vias cruzadas
se você fechar os olhos escutará a onomatopeia do riscar nos trilhos
A viagem, curta
morro a cada estação, deixando os meus pedaços
e colhendo cactos
certeza de que o florescer não dependerá de nós
Quanto à história, esta sim, cobre-se de nossa pele e suor
Impõe-nos um mundo e nos exige a coragem para movê-lo
O trem nos corta ao meio

 

 

 

***

 

 

 

Cavalo tonto

 

Esse desejo soa como cavalo em disparada
Trota tonto
Nada dito dará cabo ao frenesi
O coração à altura da cabeça
flor roxa tatuada no peito
e no sexo
O que fazer com a tua humanidade?
Não o selei, nem alisei teu pelo grosso
Arrebata meu sossego
atordoado, entorpecido
Arrebata-me

 

Helena de Andrade, fotógrafa amadora, montadora de vídeos, poeta, feminista. Trabalha no terceiro setor e é formada em Ciências Sociais, com Mestrado em Sociologia da Educação.

 

 

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