Janela Poética III

Jorge Vicente

 

Desenho: Luiza Maciel Nogueira

 

 

sei que as mãos se mantêm
no mesmo lugar subliminar,
adiante das palavras e mais perto
do poema que gira

sei que há uma árvore
e que existem troncos que dizem da
árvore [dizer é caminhar incólume
entre os versos]

sei que há palavras,
mas não digo delas
senão para decifrar
que tudo o que escreve morre cedo.

 

 

***

 

 

a língua lembra e purifica. mas não diz dos orgasmos, da pequena sombra plantada junto à árvore branca. não diz do corpo quando se toma de decadência e horror ao esplendor. não diz dos silêncios que não são silêncios. [debaixo da raíz, apenas fico eu e um enorme deserto vermelho]. a língua não diz da semente e da grande voz que alcança. do inverno, da ânsia das flores, do pecado que aberto é à vida e ao desarranjo dos olhos. a língua não pode suportar pernas, braços, sexo, liberdade de sentir e entregar-se ao chão. a língua abre-se e encolhe, escolhe as vontades, escolhe as sílabas certas, o modo único de dizer o nomeado.

o inominado tem um pecado único: não suporta a fala e diz que o poema é uma cobra gigante, plantada na base do sexo. o resto são as pernas e o que fica entregue no acto da raíz.

 

 

***

 

 

poderás ter a experiência da carne,
mas apenas tens o chamamento da
palavra viva,

aquela que, de artéria em artéria,
vai construíndo o ramal das sílabas:
ordem geométrica do sangue.

a experiência chama
e o oceano transforma,
trazendo o poema de volta
à sua raiz de árvores:

ao cimo do vento
e abaixo da copa dos dedos.

 

 

***

 

 

destrói o poema
aniquila toda e qualquer possibilidade
do livro transpirar palavras

o poema não foi feito
para a estante desarrumada,
para os limites que as páginas impõem
à memória

constrói uma nova realidade,
em que as coisas sejam apenas coisas,
em que as palavras não representem,
nem tenham significados nem conceitos

explora do corpo o seu devir
explora da vivência a tua memória
e do saber oceânico da pele

o teu antro de sílabas.

 

 

(Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Mestrando em Ciências Documentais e em processo de formação na Escola de Biodanza de Portugal, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas. Participa activamente nas listas de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu. O seu primeiro livro de poesia, Ascensão do Fogo, foi publicado em 2008, sendo seguido por Hierofania dos Dedos, editado sob a chancela da Temas Originais, em 2009)

 

 

 

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15 Comentários

  1. Gostei da sua palavra poética. Da palavra por trás do poema, do poema por trás da palavra. Da teoria a partir do próprio ato de construir o poema, pela condensação da linguagem, que é o próprio do fazer poético. Poemas excelentes são dados à estampa aqui neste espaço.
    Abr.,

  2. Muito obrigado, meu amigo :)

    Um grande, grande abraço para ti
    Jorge Vicente

  3. Amigo Jorge, sinto que nos “silêncios que não são silêncios” e que a língua não diz, está contigo a Poesia como mármore não talhado, à tua espera… E ela sai do limbo, quando as tuas raízes, bem fincadas na terra, se transformam em asas. Parabéns, amigo!
    Felicito também a “Diversos Afins” pela qualidade das suas publicações.

    Maria João Oliveira

  4. Ótimos poemas! Li todos os postados nesta leva, e estes foram os meus prediletos! Parabéns a todos os participantes. Beijos alados e azuis!

  5. Obrigado, caro José Carlos.

    É uma nova forma de encarar a poesia que pretendo demonstrar nestes meus poemas e ainda mais no meu novo livro, que está em preparação.

    Muitos abraços para si
    Jorge Vicente

  6. Obrigado, querida amiga Maria João, pelo grande incentivo e por estares sempre Presente.

    As minhas asas voam :)

    Mil beijos
    Jorge

  7. Beijos alados, cara Ana Luisa.

    Obrigado pelo comentário!!!

    Jorge Vicente

  8. Maravilha de poemas. Gostei especialmente destes versos:

    destrói o poema
    aniquila toda e qualquer possibilidade
    do livro transpirar palavras

    Lindo. Um abço a todos e parabéns a Diversos e Afins pelas escolhas.

  9. Gostei muito também. Poemas que me arribaram para o giro da linguagem, que é quando a poesia se faz. Por fonte de ser enunciadora das coisas que vivem ali, em nós. E dissipamos.

  10. Cara Roberta,

    muito, muito obrigado!!!!!

    Muitos beijos para ti!!!
    Jorge

  11. Muito obrigado, Célia.

    São poemas muito fortes e transmitem um pouco a minha perspectiva sobre a poesia, que vai muito além das palavras e se aproxima da linguagem das coisas concretas.

    Muitos abraços para ti
    Jorge Vicente

  12. Parabéns Jorge Vicente:
    “a experiência chama
    e o oceano transforma,
    trazendo o poema de volta
    à sua raiz de árvores:”
    Muito bom, isto!

    Parabéns à Diversos Afins

    Clarisse Maia

  13. Gostei demais de seus poemas, caro Jorge Vicente. Sobretudo, do terceiro.
    Sou filha de português, portanto, me achego aos escritores de minha segunda pátria. Um abração Maria Lindgren
    m-lindgren@uol.com.br

  14. Clarisse,

    imensamente feliz por ter gostado! Muitos abraços de amizade para si!

    Jorge Vicente

  15. Muito obrigado, cara Maria! Muito obrigado pelo carinho!

    Muitos abraços meus
    Jorge Vicente

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