Janela Poética III

Ana Peluso

 

Anna O.

 

 

Bertha Pappenheim não se contorce à toa, perdeu-a / a língua // Freud diria que Bertha Pappenheim ainda não sabia, mas quando seu pai não prestou atenção no casal que formou com suas bonecas, perdeu / -se-(a)tempo // A Grande Mãe levou o pai de Bertha Pappenheim, perdeu / -à morte // Bertha Pappenheim fez um filho imaginário com Josef Breuer e, perdeu-lhe / a imagem // O clima em Viena nunca foi dos melhores para Bertha Pappenheim, perderam / -lhe a senha // Bertha Pappenheim acredita na pureza que seu pai e Josef Breuer desconheciam mas perderam / e sabem // Ninguém está a par de como Bertha Pappenheim curou-se / Sabe-se que ela sorria quando emulava palavras de segunda mão com o nunca encontrado / Paul Berthold

 

 

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a esperança respira Zyclon B

 

eu vivo dentro de um presídio chamado Nothingtrix
todos os dias judeus-coreanos azuis-royais me acordam
com toda a conta do mundo débito
préstima a pagar
creditam em mim as falácias do comando
em cinza neon sobre a pele
e eu saio por aí cor análoga
de brilho fosco
coração pequeno
que ainda abate
por cima os sonhos
porque é obediente ao comando
é rocha em vez d’água
quando água era sereno
sempiterno-romântico
só reconhecia o cinza na vitória vã
agora é tic-tac sem ruído
cor de sangue vencido
e nem um agosto é próximo

 

 

***

 

É produtivo fabricar tijolos. Um tijolo sozinho é obra de arte, com mais alguns é parede, é quarto, sala, é banheiro. Raro dizer poesia a céu aberto. E só bate sol quando se atravessa tijolos e é você do outro lado. Não me lembro de já ter visto tantos tijolos. Nem de nada como quando você perguntou o nome de uma estrela olhando diretamente pra ela.

 

 

***

 

 

Sentado o poeta torce pela chuva que não cai/ em sua manga guarda a relíquia dos dias/ em forma de pergaminho bruto/ couro de pele/ de um árcade nômade/ feito de horas mornas e cansadas/ que o poeta lê em livros de ciências e encíclicas/ Em sua casa ouro de Jeslade/ o poeta bebe siderado/ o sonho de amanhã/ era mesmo amarelo laranjal/ Suas entranhas não carregam mais os dias/ seus olhos não lembram do presente/ abotoados em um sonho soturno/ encontram as mesmas natividades festejadas/ Sentado o poeta suspira/ saudade inaudita/ logo esquecida/ O que seria mesmo a relíquia em qual manga?/ O poeta sonha

 

 

***

 

 

Cada um tem seu limite
De fundar uma âncora
Uma terra no fundo do mar
Pernas pra cima sentindo o mundo
Pernas sentindo o mundo
De água
O peso do mundo nos ombros
De ossos carne sistema nervoso
Boca aterrada
Ouvidos mucos
De areia
Cada um tem em seu limite aterrar a cabeça na areia
Seu limite de não voar
Daí advém o surto
Etimologicamente falando

 

 

(Ana Peluso, paulistana, experimentadora da palavra, participou de algumas antologias, não possui livro solo)

 

 

 

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3 Comentários

  1. Gostei da sua experimentação, Ana. Os textos são vigorosos, mexem com as sedimentações enraizadas. Quando percebemos já desalojamos os tijolos, ainda que eles teimem em ficar intactos, sem nos deixar atravessá-los para descobrirmos o que se esconde atrás de suas paredes. Mas você no faz a gente sair e conhecer outras virtualidades com a sua linguagem. Parabéns!

  2. Ainda bem que muita gente boa não está aterrando a cabeça na areia da praia do Leblon, de Ipanema e alhures. No Rio, nem adianta. Vive-se a confusão o tempo todo.Mas eu gosto. Fora a canalhada!!!!!
    Um beijo e adoreios textos.
    Maria Lindgren

  3. Obrigada pelas leituras e comentários, Maria Lindgren e José Carlos Sant Anna. Abraço.

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