Janela Poética III

Fred Matos

 

Arte: Julia Debasse

 

 

cangalha

 

jamais me perguntei
porque tenho apascentado esta manada
cujos olhos perfuram meus silêncios.

gostava que não me apertassem o pescoço
nem que me exigissem manter limpos
os meus sapatos de mármore.

mas nunca, jamais, nenhum pio.

caminho ereto e sorridente como um asno
cuja felicidade é a ausência da cangalha.

contudo, tenho intimamente gritado
que todos os meus sonhos se diluem
como a neblina após a alvorada.

mas não.

estão todos surdos
nunca serei ouvido
exceto na opacidade dos meus olhos
cobertos de musgos.

 

 

 ***

 

 

balada para uma advogada

 

imagino-te imersa em códices
e que enquanto o cérebro decodifica
as filigranas de um processo insosso
a alma mergulha em outro vocabulário

as páginas voam
uma mão rascunha o contraditório
a outra, cotovelo sobre a mesa,
apóia a levemente inclinada face

há que verificar jurisprudências
precedentes que se ajustem à tese
e que tudo se cumpra no devido prazo

a alma, contudo, alheia, tece
sonhos, poemas, outras doutrinas
contraponto ao que o cérebro messe.

 

 

 ***

 

 

 entre mim e mim

 

“Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos”.
Cecília Meireles

 

não sei quem destes
tantos sou agora
se o que ri,
se o que chora,
se o que não chora nem ri,

mas pouco importa porque
qualquer deles sou passageiro
tenho neles
a dimensão do mundo inteiro
tendo todas as idades percorrido

 

 

***

 

 

balé

 

tenho um mundo sobre os ombros
e ânsia de navegar
mas rasgaram-se as velas
e sobre pálpebras de pedras
sal sol suor
mas não há mar
mais não há
apenas este peso nas pernas
e ânsia de caminhar
mas quebraram-se meus ossos
e sobre as nossas cabeças
um balé de poréns
senões e todavias
e girando como um pião
na velha arca de vidro
uma constelação de sins
uma nebulosa de nãos.

 

 

***

 

 

o verbo

 

a percepção é farol
devassando mistérios
palavras são silhuetas
luzes bailando nas trevas
o poeta um velho cego
tropeçando substantivos

e o verbo…

ah! o verbo
um tirano sem coroa
sem trono, manto ou cetro
e que, no entanto,
voa.

 

(Fred Matos é baiano, casado, três filhos, dois netos, três livros publicados: “Eu, Meu Outro” (Poemas – Editora Poesia Diária, 1999); “Anomalias” (Editora Kelps, 2002 – Poesia) e “Melhor Que a Encomenda” (FUNCEB, 2006 – Contos), além de outras participações em antologias)

 

 

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2 Comentários

  1. Gostei muito dos versos do poeta Fred Matos, parabéns!

    “e girando como um pião
    na velha arca de vidro
    uma constelação de sins
    uma nebulosa de nãos.”

  2. Fazia muito tempo que não lia teus versos…são constelaçòes de sins, pois não?

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