Janela Poética III

Zeh Gustavo

 

Arte: Marcantonio

ENCALHES

 

A caravana persistente desvenda
um catálogo de explorados a cada visita.

A coleta sela um compromisso
entre extirpados; só há silêncios
neste varal de desistências.

O calejo revela um contingente
de adormecidos em órbitas de suor.

Nenhuma voz, por enquanto, foi capaz de ceifar
aquilo que sustém novelo tão infame que produz
o costume de costurar-se a si próprio
(bocas olhos ouvidos tripas),
que se impôs e impera, lento no sufocar,
com seu sopro de ar letal a comprimir
todos os ossos. De ecos e fósseis são feitos
os que restam.

Empreendido mais um turno das pedradas;
emparedadas, embora sem termo, as alternativas
de trajeto distinto, ao final só se veem
estilhaços e espatifados, em manutenção de sua
corredeira de negações.

 

 

***

 

 

ANULADO

Ando dizendo
palavras em branco

Meu caminho não permite
pontuação

Minha sintaxe desmanchou-se
nela mesma

Estou desvalido de
ideias formas causas

Só me restam algumas
frases                                       falas

Fragmentos me faturam
(cada pedaço é cada pedaço)

Me encontro meio sem
e sem meios para

Me desalimento
com zeros                                                de dores

Desprovimentos me exageram
me impertinam

A invalidez me doutrina
Conclusões me observam

E eu me escasseio
pelo ralo
da rotina

 

 

***

 

 

A SOCIEDADE DO ESCAPE

 

a Guy Debord

 

Toda a vida atual consiste
em um seminário de distâncias;
a distância é uma semana invisível
num calendário perdurante,
uma estância perdida onde não se há
o que se é, e o que seria também sucumbe;
um instante posta-se noutro
e o próximo desafago é apenas uma porta aberta
para um longe de afetos frustrados;
o dia encosta na noite, de relógio-alarme
em punho, cerrado de rotinas;
a voz imposta-se no grito de uma árvore
presa em tela seca na garganta;
e por fim uma chama fica cega,
quando a cor de tudo em torno é fuga, sem exílio.

 

 

***

 

 

BÊBADO

 

a Fernando Palhaço

 

I

Meu bêbado segue sob forte massacre.
Ele me chega em casa todo dia exausto.
Não dorme, deita rosnando. Fica a acordar
ao longo da madrugada e, quando finalmente
é posto ao despertar, mostra-se ainda mais destruído.
Bebe café, pinga colírio e vai consumar o dia;
sob o forte massacre.

Meu bêbado é fraco. Não sabia que era
tão fraco este bêbado franco que ranqueia dores
no corpo-dó,
qual equilibra seus cabelos raros
pela penumbra velha das horas vagas.

Meu tempo engole meu bêbado.
Tenho dúvida da existência de ambos,
mas confio mais na existência do meu
bêbado fraco franco frágil que na do meu
tempo flácido frenético frígido.

Meu bêbado ogro drena o sangue silencioso
que esse meu tempo oco finge não derramar.
O tempo expira. O bêbado vai tragando.
Seus bens de bêbado são beijos depenados
de um amor sem lugar no tempo. Seu lugar,
biroscas depredadas onde o vento que trabalha
para o tempo não adentra, só cobra à saída as
horas pendidas. Bêbado, envidraçado; posta-se,
debaixo da lua, curtindo trapos e tangos
e troças e tremoços,
ainda preparando transas com o que lhe resta de tempo.

 

II

Vidrado segue o meu bêbado forte sob massacre.
Não sabia que era tão forte, fraco. Não sabia
que se sofria tanto, dentro e fora de si. É de manhã
e ele me sinaliza algo sobre o sol da feira por que
passeamos e eu lhe pago um caldo de cana, o pastel
ele não quer – já não tem gosto, massaroca vaziúda.
Muita gente assim que passa, também.

Doravante é cumprir tabela, com tantas mortes
pesando nas costas rasgadas de lembranças.

Um dia o meu bêbado vai, de vez. Ficará o seu
último chapéu, guardador das suas sentilezas – o seu,
o meu último abrigo, sob forte massacre.

 

 

***

 

 

10 SOLUÇÕES SUBJETIVANDO
O DESCAMINHO DOS SERES

 

1. Buscar uma melhor visualização do chão.
2. Dependendo do público-alvo, obter namoros de uma mulher do tipo nuvem ou de um homem do tipo pássaro.
3. Criar nichos no ralo do banheiro social.
4. Empregar aranhas oriundas do mercado informal de insetos.
5. Gestar pessoas dentro do olho esquerdo, se destro, ou do olho direito, se canhoto.
6. Cheirar os sentimentos para eles adquirirem uma cor mais agradável.
7. Desvirgular as razões no meio de sua sintaxe.
8. Seguir sem preestabelecimentos direcionais.
9. Traçar paralelas de modo a aproveitá-las de referência para encontros amorosos.
10. Dançar deitado na ponta dos pés.

 

 

Zeh Gustavo é escriba de ofícios variados – poeta, ficcionista, compositor, cronista, revisor de textos. Como autor, publicou, entre outros livros, “Pedagogia do Suprimido” (Verve, 2013), “A Perspectiva do Quase” (Arte Paubrasil, 2008) e “Idade do Zero” (Escrituras, 2005), além do conto “Comuna da Harmonia”, presente na antologia “Porto do Rio do Início ao Fim” (Rovelle, 2012). Participou da organização e da curadoria das edições 2012 e 2014 do FIM – Fim de Semana do Livro no Porto.

 

 

 

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