Janela Poética III

Carla Diacov

 

Foto: Luiz Navarro

 

desarranjos

 

para Marcelo Novaes e para Ana Ehre.

 

1.
embeba-te dum canto do quarto
em lá
louco de tua sombra
listas
objetos para a tua despedida
um limão partido
para que não lhe seque a boca
uma chinela só
para que um dos teus pés fique à procura
um rumo de poeira traseira
para que possas subir
seguir à esquerda
então à direita
para que possas passar a orbitar outras horas que não esta
só agora que agora é então
portanto
só então
feche os olhos e a boca
respire mais uns segundo
e mais um e mais um
inspire como que vomitando tudo o que te enfiaram goela abaixo como definição de coisa
que
agora
agora que é então
tu sabes bem
não são
ah, Marcelo! as coisas que finalmente não são.

 

2.
corte
ou fure
um pedacinho do teu dedo
ó
o teu dedo
a pequeníssima dor
em ondas
em pequeníssimas ondas
ó
corte ou fure ou
destampe a ponta do teu dedo
com ele
o dedo sangrento
toque o contorno do teu rosto refletido no puxador da gaveta
sabes bem que nesta gaveta
estão
as cartas que não mandaste
ó
as cartas
dentro destas
os cheiros de tudo o que …
é de lembrar?
é de saber desses cheiros, não?
não!
não tome as cartas nas mãos
sequer abra a gaveta
poderíamos com a crueldade neste segundo?
há uma luz no rabo dum inseto que se diz musical
há um verso repetindo a tua cabeça
há um nó desarranjado dos outros nós na embarcação:
enterra-te neste.
onde o sangue fez garças no teu rosto
deverá nascer um espaço para as memórias do novo chão.

 

3.
beatifico um broche que tenho
um par de botas ao estilo cowboy
há dia de não me saber
caso eu não use o broche
se já estou longe de casa
sinto que estou muito mais
longe

desembestada
grito COMO PUDE?
……..COMO LARGAR MEU ORÁCULO SEM MIM?
agora sabes que também o tenho como oráculo
e ainda logo
e dizer
AINDA LONGE
ainda
AINDA LONGE E SEM MEU ORÁCULO DA SORTE
sorte
benção
proteção
escudo
dado
agora tenho de entrar num elevador
entro de costas
como manda o bom e velho costume que acabo de inventar
no caso da ausência do broche
a entrança em elevadores
somente pelas costas

ando desejando viajar
até onde não possa mais a  excursão do toque
daí que penso em não levar o broche comigo.

 

4.
parei de contar estrelas
no dia em que parei de contar aos outros
que contava estrelas
que já havia um catálogo iniciando-se
que em minha metodologia
gostava de fazer uso de medalhas como
irmandade
loucura
xarope, quilograma e medalha
parei de contar as estrelas
não paro de contar mentiras
(ossos das imagens que ainda)
sou imprudente demais, Ana.
e atravesso a nado o mar da miopia.

 

5.
já podes fazer tuas próprias meias!

o homem sentado diante do abajur azulado
sente tanto o frio lhe agarrando pelos pés
e nada faz
além de sentir
olha a fiação do telefone
o caminho no rodapé
força a memória
a cor antiga
o tempo em que a tia Sandra ensinou
CEBOLA? OU CÊ PICA MIUDINHO
OU NEM PICA!
que frio
o restolho da quentura escapando pelos pés
e nada faz
olha pela janela central
a vizinha a desenrolar um imenso cartaz

já podes fazer tuas próprias meias!

e nada faz
além de sentir:

 

6.
há o alcance
há uma coisa ou um vagão onde se chegar
há a tua e a minha vontade

nalgum lugarejo que não este e nem aquele
a aproximação

se eu fosse de cascas
iria pelada
para sentir no sumo
no suco do que sou
a agonia

se eu fosse de cera
eu não iria

se eu fosse você
eu pediria
COMA-ME E LEVA-ME CONTIGO
PELO TEU LADO DE DENTRO
EM LÁ
VOMITA-ME

se você fosse eu
você perguntaria
LÁ ONDE?

daí que há também a transpiração
e a transpiração dos objetos.

e então?
should we?
há essa chance ainda. agora.
agora que é então.

 

7.
uma corda
uma pequena corda
e levantar-se pela manhã
pela noite
deitar-se
e uma corda
de ter junto
a dizer
poder dizer
com a corda em punho
dizer de monstros
desorganismos
alergias
e de cadeiras que não se encaixam ao mundo

há um desenho
(iria pelada se eu fosse de cascas)
há um desenho
no fundo do fundo
daquela mesma gaveta que não
nele
no desenho
uma corda puxa uma baleia morta e a amarra na pontinha da tua barba puta.
então tua necessária cadeira
desencaixada do mundo inteiro.
e eu te amo.
e nem te amo tanto, mas amo.
e tua barba é puta.

 

8.
pois é.
há o alcance.
há uma coisa ou um vagão onde se fazer.
está nos novíssimos catálogos de ser
coisa e deus.
coisa de ninguém.
coisas devolvidas pelo mar.
gaguejante.
crente.
engolidas e depois arrancadas de suas apropriações.
irremediavelmente.
arruinadas de suas cores.
pois é
é jamais.
regurgitar.
uma oração
um par de luvas de orar.
deus!
coisa!
que jamais seja também a violência inevitável e de afetuoso traço
nas coisas que.
caneta
caneca
caçarola e corrente.
cada pedido de cada coisa.
porque coisa pede, ora.

 

 

sou Carla Diacov. de qualquer forma. não me importa tanto ser. e também vou e volto e babo durante. nasci em São Bernardo do Campo e moro em Itanhaém e brinquei na praça-dos-meninos em S.B.C.. morei em Londrina e ela em mim. fiz teatro e me desfiz. então escrevo e sei que vou, mas volto. de qualquer forma. e gosto tanto de pão de fôrma com amendocrem. de qualquer forma, que é como eu sou, mas volto. babando. agora dei de bulir com as plásticas também. e elas comigo. sei que vou. sei que volto. sei de mim, parada, medindo os dedos, os meus e os dos outros.

 

 

 

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1 comentário

  1. A poesia, o poema, a poetisa. Tríduo/trinomio. Encontro do homem com a palavra e a palavra desfez no homem a angustia do não saber. Assim nasce o poema dentro da poesia da poetisa. E se despe Carla Diacov de conceitos e os conceitos se fazem de veste em forma de uma pérola palavreada, com o ritmo da rima guardada como se fosse “cada pedido de cada coisa”.

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