Janela Poética III

Ana Horta

 

caroline Pires

Ilustração: Carolione Pires

 

Estou sentada no limiar da casa
Inteira e magra
A rua abre-se no vidro cheio de reflexos
Tecidos por aranhas diurnas
Anoitecendo

Seguro o quotidiano quieto
Como um bicho de asas frágeis entre os dedos
Um pássaro de porcelana viva tinge a manhã
Do ocre da parede imaginado abre-se um esgar de humidade
O sorriso de uma velha ausente
Ou o caminho deserto descendo

O gato jaz no centro inavegado da sala
Dentro dos meus ossos faz imenso frio
Já só poderia segurar uma violeta nas mãos descarnadas
E atrás de mim uma amiga nua
Um sonho desenrolado
No papel roto da parede

 

 

 
***

 

 

 

Desabrocha-me uma flor no estômago
Um lírio expandido de água morna
Que me marca o centro líquido do corpo
Depois arquejo e solto-me no umbigo de água
Meridiano em volta da terra
Em volta da bolsa minha dos alimentos

Isto não é a escrita
Uma massa cega murada ao verso

Tão só a linha brilhante

Um nascimento inteiro pedindo água

 

 
***

 

 
Mastigo a maçã…
O dia é polido como um espelho
Mas impuro
Tingido pelos sons da minha boca
Pela curvatura voluptuosa do fruto que o preenche

Na quina dos dias há sempre o redondo de uma forma comestível
Não posso estar sentada que uma folha me não fira os dedos lisos
Clorofila indelével marcando a pele

Se a sombra da maçã é suave e fria sobre o solo
O estômago desfaz o suco amarelo do fruto
Os intestinos lavados
Prendem-te ao sulco lavrado na terra

E tudo isto é talvez uma mesma luminosidade
Ancorada debaixo dos olhos

 

 

 

***

 

 
Arte Poética

 
Sono
Abro o olho silente da palavra
As coisas monologam infindavelmente consigo próprias
Opacas com o halo vaporoso do meu sono

Reconduzo as palavras ao seu lugar mais ínfero
Mas deixo-as sujas de terra: inteiras
Esse é um desenho pleno, rugoso,
Um desenho de barro e cal em que nos sabemos
Sem nome
Entre as linhas
Esse pequeno toque
Sombreação ligeira da mudez

Um cavalo desenha-se no vidro fosco do meu sonho
Mas não lhe sei o corpo
Isso
O flanco
Era já só pressentimento lasso da mão
Dor
Talvez memória côncava de pele
Mas ainda…pertença
O vácuo dos dedos aflige o futuro inteiro com o interior opaco do animal
E este era o momento presente

 

 
***

 

 

Nenhuma dor latente nos mina:
Somos apenas percorridos por um pequeno animal agudo.

 

Ana Horta nasceu em Lisboa, em 1975. Estudou Filosofia e Literatura na Universidade Nova de Lisboa e Fotografia e História de Arte no Ar.Co (Centro de Arte e Comunicação Visual). Escreve poesia desde que se lembra e nunca mais conseguiu parar. Estes poemas pertencem ao seu primeiro livro: “Inventa uma voz no rodopio do corpo”, Black Sun Editores, Lisboa, Dezembro de 2002. Tem colaborado em diversas revistas de poesia e um segundo livro de poemas no prelo: “Ínfimo Vento, Volta d’Mar”, Outubro de 2015.

 

Clique para imprimir.

1 comentário

  1. Excelente é a palavra que encontro para a poesia de Ana Horta. Ah! os portugueses! Sempre me assombram com seu jeito poético sejam homens, como Pessoa ou mulheres, como Florbela.
    Parabéns e um beijo a Portugal
    Maria Lindgren

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *