Janela Poética III

Clarissa Macedo

 

Valéria Simões

Foto: Valéria Simões

 

SETE ABISMOS

 

A alma relincha
na estrebaria.

Macho de cavalo
que galopa trovas
do pensamento,
engole as águas
de pasto e de feno.

Há terror nos ventos
do cavalo magoado,
que perdido rompe,
alado, as trincheiras
e cai como anjo
de tormento.

Há éguas rondando
pratos de esquecimento.

Há rodas e correias
na carruagem violenta.

Naquela crina
de ferraduras negras
um cavalo
de patas ralas:

Os sete abismos da vida.

 

 
***

 

 

DA INVENÇÃO DA VIDA

 
Do mar que se inventa
emerge uma rocha.

Do que se inventou fora disso
há rumores de um tempo
há cavalos de água
que nunca pude galopar
heróis de alga
que nunca me salvaram.

 

 
***

 

 

FÁBULA

 
No teu aprisco imenso
sempre houve uma ovelha
pequena, cinzenta, desajeitada

aquela que frente ao cajado,
ao latido do cão também imenso,
fugia e não se guiava

aquela que diante do espelho d’água
não cria na imagem que se revelava
nem na eternidade de que ouvia

aquela que nua, de lã cortada,
sussurrava cantos às irmãs.

Uma ovelha: tal qual tantos bodes.

 

 

 
***

 

 

 
SEGREDO

 
Pouco sente o ruído das sombras
ou a linguagem dos pássaros.

A língua é matéria adiada
assim como a morte
é a queda dos que divagam

o velho magro adotado
penetra na mesma terra
em que heróis choraram.

Segue a vida: sutil perenidade
mesmo timbre, mesmo lamento.

E o firmamento que nos cobre
não ouve a língua das sombras
ou o ruído da morte.

 

 
***

 

 

UMBILICAL

 
As casas que me habitaram
nunca disseram adeus.

No meu corpo de desenganos
cada madeira, cada farpa.

Entre o menino que se foi
e o homem que não chegara,
impõe-se cada cômodo…
alguns sonhos, ambas fraquezas.

Às vezes penso que quem
me pariu não foi a mãe ida,
mas o concreto com frestas
que iluminou planos de pipas,
minha última barba.

A casa que agora me vive
é um cubículo, um palácio
de pedras agras.

 

 

 

***

 

 

CONCERTO PARA CAVALOS

 
Despidos de crinas que não se reconhecem
Cravados de marcas de ferro
Fugidos pela palha que nega o que desejam
Mortos pelas pirâmides que migraram
Surdos pela sinfonia que não se nomeia
Loucos de manadas de dragões que cospem estrelas
Vivos pelas correntes que berram astros
… assim são os cavalos do concerto do meu coração
crianças que preparam o primeiro verso,
feras que não se sujeitam.

 

 

***

 

 
LANCINANTE

 
Guardados os tentáculos
o que aflora no orvalho
são os males indivisíveis,
cicatrizes não costuradas.

O que tumultua a partida
é o horário errado, um
relógio de ponteiros gastos.

Lançadas as sombras no lixo
guarda-se para a próxima coragem
um depois que não virá.

 

Clarissa Macedo nasceu em Salvador e vive em Feira de Santana, Bahia. É licenciada em Letras Vernáculas (UEFS), mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela mesma instituição e doutoranda em Literatura e Cultura pela UFBA. Atua como revisora e professora. Ministra oficinas de escrita criativa. É autora de “O trem vermelho que partiu das cinzas” (2014). Sua poesia está sendo traduzida para o espanhol. Os poemas aqui publicados fazem parte do mais novo livro da autora, “Na pata do cavalo há sete abismos” (Ed. 7 Letras).

 

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