Janela Poética III

Alexandra Lopes da Cunha

 

Foto: Raul Krebs

 

A minha morte

 

Será um dia a minha morte.
Ou noite, tarde, um instante
cravado, remate em meu tempo,
minhas horas findas, neste momento
até então desconhecido, impreciso,
imprevisto, mas sabido desde sempre.

Será e eu deixarei de ser.
Será e eu calarei o fluxo contínuo
de minhas palavras profusas,
o fluxo pulsante de meu vasto sangue,
o ar exalado será frio, insignificante,
carregará resquícios de mim.

Os meus olhos, que foram outrora
tão bonitos!
Janelas despertas…
Abertas
agora ao nada.
Fechados agora para tudo.

 

 

***

 

 

PreTérito

 

Não é. E não somos mais que destroços,
trastes cobertos de ferrugem
e da poeira dos séculos.
Mariposas exaustas
a flutuar
na imobilidade rarefeita
do ar antes da chuva.
Já somos pretérito,
amor morto.
Já somos.

 

 
***

 

 

Definição

 

Sou mulher sem qualidades.
Desqualificam-me os adjetivos
e os advérbios ignoram-me,
solenemente.
Substantiva até a medula dos ossos.
Também abstrata, se me convém…
Dos verbos imperativos, mantenho distância.
Prefiro os condicionais, hipotéticos.
Pretéritos? Sempre imperfeitos.
Artigos indefinidos,
pronomes impessoais,
não sou amiga de coletivos.
Só eu, poeta,
em algumas horas do dia.

 

 
***

 

 

Criador e Criatura

 

Criaste um demônio
ao pousar em mim teus olhos
escuros de pólvora.
Queimei, incandesci,
desabrochei em primavera antecipada,
rubra flor carnívora,
expectante de ti.

Deste luz a este ser faminto dos teus afetos
e te foste,
irresponsavelmente desavisado,
as mãos nos bolsos, aos lábios,
uma melodia sibilante.

Me fiz em teus olhares,
deste forma ao meu corpo
na dança de tuas mãos,
moldaste-me ao teu gosto
e te foste!

A cria que iluminaste
com o fogo do teu desejo
consome-se,
devora a si mesma,
grita, urra sua dor
de amante órfã.
Por que te foste?

 

 
***

 

 
Ressaibo

 

Deixo que descansem as palavras
no dorso úmido de minha língua.
Molhadas na saliva amarga
dissolvem-se, feitas em água
tépida, espessa, algo repugnante.
Devia cuspir o caldo abjeto que tenho à boca,
vomitar as palavras que represo,
que me fecham a garganta,
e causam náuseas.
Ao invés disso, inspiro o ar
pesado de todos os dias.
Insisto e se abre a glote.
Engulo todo o veneno das palavras fermentadas.
O que resta sobre a língua é o ressaibo,
o travo triste de engolir fracassos.

 

 
***

 

 
Vórtice

 

Desejei com a ânsia dos amantes
alcançar-te e prender-te nos meus braços.
Servir-te de meu corpo, calabouço,
afogar-te em minha boca, fundo poço,
e prender-te entre as pernas, duplo laço.

Exaurir-te num tempo sem começos.
Em embates intrincados nunca findos
e as tréguas momentâneas eram hiato
a separar o que eu almejava unido.

Amaria assim até a morte,
a tua, por suposto, esgotado.
Entre os meus desejos consumido,
entre os meus abraços acorrentado.

 

Alexandra Lopes Da Cunha nasceu em Brasília, DF. É formada em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e tem mestrado também em Administração pela mesma instituição. Tem dois livros de contos publicados: Amor e Outros Desastres (2013), Vermelho-Goiaba, vencedor do prêmio IEL 60 anos, na categoria autor estreante, e Bífida e outros poemas, pela editora Kazuá, lançado em 2016. Aluna do programa de doutorado em Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde mora.

 

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1 comentário

  1. Alexandra teus poemas são marcantes e, como sempre digo, o futuro está ai para colheres. Mais e mais janelas se abrem…

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