Janela Poética III

Taís Bravo

 

Foto: Antonio Paim

 

Escavando areias com sede de oceano

 
escrever um romance
pela transcrição das nossas mensagens
dedicar uma página em branco
à cada hora
em silêncio
até que
a densidade da espera
altere
cada segundo
ocupe
uma
página mais
uma
agora
uma
dezena
sem nunca ser
a mesma
o feitio das somas
as raízes que avançam pela calçada
o acúmulo faz o objeto
intransponível
o livro forma estacas
debruço meu ouvido
ao que é sólido
.
um ponto é mais grave

do que a ausência narra
ressoa

os ruídos das minhas mãos

 

 

 

***

 

 

 

Meus desejos são guelras

 
para me localizar
os efeitos da ausência
não há um áudio

Perco:
a minha carne insiste
em renovar o sangue
até que a forma da sua boca deixe
o início das minhas pernas

o seu contato
foi nada
além de alento
agora torna-se
bem diante de mim
fora do meu alcance
algo que se decompõe
na quina de uma memória

o seu abraço

e, por último, a história
a espera da segunda pessoa
do plural
supus
e sempre foi minha

me cabe o trabalho:
analisar vestígios
esvaziá-los de nostalgia
ou fome
acertar meus parâmetros
com essa média inequívoca
e insuficiente
o que alguns chamam de realidade
uma convicção temporária

é isto que move o embate.
meu corpo resiste porque conhece
a aridez que me aguarda
na volta à superfície
o que respira é carcaça

 

 

 

***

 

 

 
Millennials quase amam

 
Eu tiro uma foto da sua janela
com isso já anuncio uma despedida
porque quero me lembrar
como era a brisa na sua janela
depois te pergunto se venta assim até no verão
como quem se prepara para os dias difíceis
e espia o futuro
você me diz que depende da direção dos ventos
eu nunca entendi como se usa uma bússola
penso que aqui poderia ficar
fazendo nada
feito os que esquecem dos trajetos
e se distraem com o que há
indiferentes aos movimentos obsessivos
idas e vindas
de quem insiste no desgaste
para justificar a perda
se entreter com o que há
aceitar mais um café
diante da direção propícia
longe do que pode ser ou não certo
guardo o recorte azul
para quando voltar
partida
porque conto mais com a nostalgia do que com a sorte

 

 

 
***

 

 

 

Treino

 
eu ando
precisando
de alguém
que deseje
meu corpo
enquanto
ando
em busca de
um corpo
pode ser até
menos
um pedaço de pele
não contra
sobre
ou melhor
entre
a minha pele
sou eu
raspando o tempo
enquanto ando
a minha pele
cobre minha boca pernas ouvidos
engole
retira
todas as células mortas
seu pezinho macio
novamente
anuncia uma voz
distante dos meus olhos
é oferta
não é um corpo
enquanto ando
há em torno
incontável fluxo
meu quadril
treinado
a fronte
contida
o olhar
desvia
o corpo
não é meu
à rua
eu ando
precisando
não ser
um alvo
no Largo do Machado
por exemplo
um pedaço
de pele
sobre a minha
pele
é alarde
não é como a sua
mão
a sua mão
é você
a minha pele
sou eu
o contato
entre
as células mortas
é este ponto
a insistência de infinito
a tentativa
de puxar um fiapinho
e estender o limite
em alguma medida
entre
as paralelas
enquanto me toca
entre
raspa o tempo
entre
a confusão de carnes
que sou eu
que é você
a sua pele sobreposta
ao meu desejo
é algo fora
da precisão dos passos
ou do refúgio dos pronomes
a invenção nunca garantida
o imediatismo inevitável
das partidas
o que significa:
ir

 

 

 

***

 

 

 
Partida

 
A espera
alguns supõem coisa estática
plácida
frígida

A espera
imobilidade de quem está disponível

A espera
as histórias esquecíveis de Penélope

A espera
a qualidade de um gênero

A espera
estou em um barco
que parte ao mar
retorna à ilha
volta ao mar
busca qualquer
aceno pedido bandeira fogo
e encara

o infinito

A espera
estou aos pés
de uma dormideira que pisca
a cada agitação das marés
e ela se faz imóvel
estou obcecada em existir
despida de qualquer olhar
estou em busca
de algum registro
o rastro da partida
no entanto é logo engolido
pelo risco
exato do mar

A espera é
luta
conflito
embate

O silêncio do que não procura não deseja não ocupa qualquer parte de mim

estou alheia quando toda minha pele é isenta de fantasia
estou alheia quando a nudez é um lugar inexplorado
estou tão alheia quanto este território que aprendi a chamar de meu
corpo com a falsidade própria de cada palavra

A espera
não ter a possibilidade do abandono
espiar todas as páginas suspensas
neste silêncio

A espera
se dobra diante da perda
uma mão costura
a outra rasga
o sentido
para além das rupturas
é movimento

 

Taís Bravo é escritora e tradutora em formação. Autora do livro digital “Todos os meus (ex) heróis são machistas”. É uma das criadoras e editoras da Mulheres que Escrevem. Co-fundadora da revista Capitolina, desde 2014, escreve para veículos como a revista Ovelha, a Alpaca Press e a TRENDR. Suas poesias já foram publicadas na revista Oceânicas e na Subversa. 

 

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