Janela Poética III

Vladimir Queiroz

 

Foto: Bárbara Bezina

 

VALADO

 

Existe ali ao lado
um buraco profundo
que se divide em temores:
um que berra e se oculta;
um que se transpõe
invade
vai ao longe
nas asas
no voo da catapulta;
um dominado
que rumina
o lume indigesta,
que passa pelo trato
como um jato obscuro;
um que transpassa o valado
de um pulo, em solavancos
mancos, de bengala
e se rala nos joelhos
no farpado embolado,
cumprindo uma penitência.
Sangrando sorri
um riso largo
nas mãos brancas
de um teclado melodioso,
vai mancando
arrancar os tocos
……………….trecos
…………………….tascos
da alforria prometida de um ser alado.

 

 

 

***

 

 

 

ABISMO

 

Resvala-se o louco pelas frestas,
respinga a borrasca pela testa
que lhe empresta o balanço do mar
para navegar sem rumo
à espreita do horizonte que lhe foge….

Um mouco que lambuza na fronte
as cores e segue pelas nuanças
à beira do abismo.
Numa mistura de cataclismos,
em desalinho cisma pela noite,
pelos ventos aguçados
de sentidos.
Adormece após os uivos
e gemidos.

 

 

 

***

 

 

 

LILÁS

 

A curva do rio é um anúncio,
prenúncio da correnteza.
Prepúcio tosco a desvestir o reinado
que coroa o bem-te-vi.
No jornal a manchete desregra a balburdia
criada no matagal:
torrenciais as chuvas estrondam e ocultam
o choramingo dos ninhos que repousam sob a várzea.
Nem se ouve o gemido germinado da gema
de um cristal puro que prende o grito de vida:
jaça a ir-se colérica no sopro do vento,
acompanhar a curva do rio que mastiga o bambual.
Indefeso caminho do leito
que na tormenta indigesta sucumbe.
Um obituário genérico nas mãos de um bérbere
hedonista, a moldar com as mãos a ânfora,
que recolhe a água que molha a margem,
que muda a cada instante
e flui:
pretérito sujeito de Éfeso em profecia.

Vem o perfume lilás aos olhos,
cai pétala por pétala o aroma
adubando a sola pé ante pé,
curtida de um couro denso, passa.
Uma rês que se desfez.
Não se compraz e segue,
fica o perfume estendido:
perdido jaz
…………….na praça.

 

 

 

***

 

 

 

MUXARABIS

 

Vejo a beleza que se espalha
por detrás da treliça
escondida,
a resguardar a formosura.
Só a réstia e o caminho lunar
podem beijar-lhe a face,
adernar sobre a pelve roliça.
Só a treva a rondar-lhe a boca,
despregar o véu da doçura.
Só os dois a comungar o amor,
entrelaçar os segredos.
Desvendar os devaneios,
os arquejos
e anseios guardados em jura.

 

 

 

***

 

 

 

TROMBETAS

 

As trombetas são ouvidas
para anunciar a estreia sem ensaio.

Vai pelas escarpas rolando o corpo
até despencar pelo barranco a alma,
e com calma repousar a crina,
lacrimejando.

As trombetas são ouvidas
para anunciar a estreia sem público,
e no púlpito desfazer as injúrias,
póstumas.

Vai pela campina forrar de madrasto a pele
que lhe permite o passo.
Despedir-se da culpa
que lhe mantém preso aos mistérios.

Sáfaro indigesto a berrar
ao Deus Hefesto:

Escrever com o ferro da forja a fala!

 

 

 

***

 

 

 

BARBA

 

A barba a crescer-lhe aos pés,
a tocar os caminhos nos passos
em desalinho que ficaram construindo o por vir.
A barba a roçar-lhe a mão, que pensa
segura o afago a gestar a ânsia da pele.
A barba, um invólucro de algodão
a ocultar a expressão das marcas
estiradas pelas macas que passam
e levam o tempo num suspiro,
desnudo de tudo,
num susto oculto da leve brisa
que roça a barba.

Um soluço a descer-lhe pela face
e mergulhar nos fios
escondidos na sofreguidão.

 

Vladimir Queiroz nasceu em Feira de Santana, Bahia. É membro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Européias (CLEPUL) – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou os livros de poemas “Seres & Dizeres” (Pórtico, 1996), “Apokálupsis do Sertão” (Luripress, 2008), “Instinto” (EGBA, 2010), “Muxarabis” (EGBA, 2015), “Brasileirança” (EGBA, 2016), dentre outros.

 

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