Janela Poética IV

Maria da Conceição Paranhos

Foto: Peterson Azevedo

 

 

1. SANCTUS

 

¡Ay, qué larga es esta vida!
¡Qué duros estos destierros,
esta cárcel, estos hierros
en que el alma está metida!
Sólo esperar la salida
me causa dolor tan fiero,
que muero porque no muero.
“Vivo sin vivir en mí”. Santa Tereza D’Ávila.

 

É o planger desse som e o breviário,
odor de incenso percorrendo o ar:
joelhos macerados no calvário
e a visão dos mistérios no olhar.

Que segredo se esconde entre essas linhas?
Falo? Quem ouve? Para quem falar?
Ó Deus, se escutais, por que tão longe?
Por que estais ocluso nesse altar?

Procuro Vossa face na cidade,
Vossa voz nesse canto (ouço cantores),
mas outros, que não eu, têm santidade,
isentos de pecados – e eu, Senhor?

E nós? De que matéria somos feitos,
nosso corpo é errado, esse errador?
O que fazer do corpo, então, Senhor,
tão dúbio na vertigem e desespero?

Mas os santos, tão puros, que segredos?
Pureza é que convive com Amor –
então, Senhor, um corpo para quê,
casa de tanto erro e tanta dor?

O amor, rito de vestes e metais,
entrevisto ao sopé desses altares,
na bela e poderosa liturgia,
nos proíbe do Santo e nos exila!

Nosso espírito se abre à voz dos monges,
e nós, neste desterro, neste adro.
O canto que sabemos vem do corpo,
mas, esta alma de carne e dor e sangue?

E tangem os sinos e sinos só tangem,
e ver, então, que nada nos desdoura,
pois tudo é Cristo em corpo, amen, amen,
é o Corpo de Jesus em nosso corpo.

(Anima Christi, sanctifica me.
Corpus Christi, salva me.
Sanguis Christi, inebria me.
Aqua lateris Christi, lava me.
Passio Christi, conforta me.. )

…que estamos a naufragar,
que soçobra nossa nave
nas profundezas do mar!

Todos silentes, todos tão ordeiros,
dentro das igrejas, e esta capela
e esta roupagem então? É esta, a que tenho,
joelhos tenros postados no lenho,

expiar. Mas o quê? Que mal fizemos?
Nascemos já marcados para o nada:
nada sabemos, nada consentimos –
ébrios de Deus, mas prestes a pecar.

Sangue de Cristo, vinde e revertei-nos
a Vós. Sem Vossa mão, não há salvar-se
do pecado insensato – não saber
das dores da Paixão de Vosso amar.

Sanctus, Sanctus, Sanctus,
Dominus Deus Sabaoth.
Pleni sunt caeli et terra gloria tua.
Hosanna in excelsis.
Benedictus qui venit in nomine Domini.
Hosanna in excelsis.

 

 

***

 

 
2. REMEMORARI

 

¡O lámparas de fuego,
en cuyos resplandores
las profundas cabernas del sentido
que estava obscuro y ciego
calor y luz dan junto a su querido!
San Juan de la Cruz.

 

Da rua vinham vozes e segredos,
as aulas matutinas, mas o medo –
as grades e essas ruas, deslumbrando,
a visão de vitrines – quê comprar?

Passam freiras no pátio dos canteiros
(os da infância, tão bons nos seus sossegos,
mas, estes, de formosos e esmerados,
confrangem a alma, tão desacordada).

As mãos cheias de terra, já me lembro
daquele cheiro denso e do vapor
das horas tênues no fragor do tempo,
ah, se me lembro, e quanto é o pensamento

da terra, terra, terra – tu es pó,
e ao pó reverterás em dia a vir,
tão próximo, a pulsar nesta carótida –
e estes ventos lunares, ventanias,

as mortes antevistas nas gravuras
nas paredes da casa, nas fissuras
do tempo consumido, ah, ainda ontem
olhávamos os rostos das pessoas!

Sem despedidas partiam a mirar-nos
perenes, altas, mãos de tochas frias,
e das ruas revinham vozes fartas:
manhã a pino, ouviam-se cantigas.

A morte assim não se assemelha à outra,
na Paixão vislumbrada, luz de fogo,
porque o Filho do Homem abriu a porta,
a porta estreita e a dor por nos salvar.

Soluçam e gemem no verão de tons
flavos no amanhecer de resplendores
e o tempo trota tonto em seu tropel
de sibilos e sustos, seus ginetes.

Visitando os filósofos, tão cedo,
ingressando nos templos, a buscar
os nexos em suas rimas, rumas, remas
de sons provocativos, solfejar.

Os ouvidos se apuram, e o verbo ausente,
dos dicionários. Uns mínimos verbetes
permitiriam o humano soletrar
e sempre mais e mais, sempre cantar

aos ouvidos cerrados dos incrédulos,
a tudo o que se ouvisse e se quisesse
em folha de papel, essa hora branca
(soluça essa memória, agora estanca).

Ouviu-se um som fulgente, e ledos versos
que se escreviam e iam, sem parar,
beleza movediça – levantando
dilatados espaços – nas procelas.

Desejo de partir, entrar na esfera
de um mapa-múndi ileso. Os oceanos
plenos de água mortal, gelo e punhal
atravessando o ser que freme e geme.

Em momentos assim, por que poesia?
Rumor aceso, sempre, recorrente –
esta lâmpada, em fogo, alumiando
as profundas cavernas do sentido.

Anima mea, e esta voz em surtos
desde a primeira ação – tirar do caos
um outro mundo, e deste, mais e mais,
descortinando vidas, tão ocultas,

com o poder que me destes de plasmar
com estes barros e lamas esquecidos,
escondidos, mas fartos no pulsar
de uma artéria recôndita. Ó vida,

que estás a nos chamar, doces esquinas
de onde se vê o coração sangrando
de um ser imaculado, a nos pedir
para darmos à luz coros de anjos.

A limpeza dos dias, os mais puros,
qualquer que seja a força desses luas,
que podem nos lançar em noite obscura,
pedra e limo na boca de recursos

muito cedo entrevistos, mas atados
a esta escassez humana. Ah, que voos
privados de umas asas, em alar-se
para abrigo ou canção, um nosso porto,

que estava obscuro e cego o meu farol.
E os estranhos primores descerraram-se,
no calor e na luz dos meus amores
a face rutilante como sol.

Mas existem as âncoras suicidas
e mergulho pesado para o orco,
ralentando o fadário de uma vida
sem tempo e espaço – é hibernal tesouro.

Ó barca, vida desmemoriada,
ilhas do Amor, além do navegar!

 

 

***

 

 

3. AS VOZES

 

Amago de la humana arquitectura,
ejemplo de la vana gentileza,
en cuyo ser unió naturaleza
la cuna alegre y triste sepultura.
Sor Juana Inés de la Cruz

 

Cidade, teu recorte sem postais,
repele os estrangeiros da baía
de fulgores azuis – e nossos ais,
e a serpente nos pés, Santa Maria!

A emoção no rosto, a criatura mira:
ali contempla os céus, o seu segredo,
brancas mãos de aleluias invadidas,
e palavras na boca, redizendo.

Que já doem os caninos, a tez sangra
neste ranger tenaz, a ouvir as vozes,
e o ditado abismado nunca estanca
nos ouvidos antigos dos consortes

na dor, na dor da luz, e é só silêncio,
e solidão, silêncio, quem me ouve?
Os sóis se esparramam nesta ausência.
nesta falta de haveres, só os sons

são destino e guarida, desertores,
se se os deixa sem boca, sem contorno.
Ah, que quero outros mares, mais azuis,
que a traição se faz além da Cruz –

na qual o vulto imenso se abateu
em Gólgota. Te vejo, e ali estou
ao teu lado direito, aonde vou
após vasto mergulho – mar Egeu,

além destas iradas geografias,
num tempo de titãs, aonde Atlântida
há muito foi tragada. Geofagia
de terracota ingente no meu cântaro,

todavia partido. E há viagens
no tempo amarroadas e sem espaço,
de onde já descortino essas imagens
de mártires e heróis, daqueles santos.

Oh, miragem suprema, estar ali,
despedida do corpo penitente,
tão castigado e só e tão doente,
fitando largos céus vistos daqui,

dessa pequena greta de angustura.

 

 

***

 

 

4. AS AULAS

 

Ultima hominis felicitas est in contemplatione veritatis.
Summa Contra Gentiles, III, 37.
Santo Tomás de Aquino

 

– Por que me procuráveis, pai e mãe?
O meu destino, então, não pressentistes?
Não pertenço a família, terra ou raça,
concerne ao Pai a estrada do meu fado.

– Mas nos afadigamos e choramos,
ó Filho que sois nosso aqui na terra,
não será crueldade nos deixares
pranteando e buscando nessa esfera

em que nos foi legado o dom de ter-Vos
no calor de um abrigo, nosso lar,
seu pai, na sua oficina, a abastecer-nos,
trocando dia e noite em Vosso amar?

Mas que amor é esse amor, que só retira
o fruto de meu ventre, a mim entregado
pelo Deus de Moisés e de Davi,
nossa casa em palácio transformada,

com o filho de Javé? Assim soubemos,
e assim os nossos passos Vos seguiram..
O Arcanjo me exortou fosse serena
em laborar na fé dos já ungidos

por palavra de nosso Pai eterno.
Ó filho meu, tamanho que sejais,
sede pequeno. Aonde, a humildade
que nos disseste ser das propriedades
gratas a Vós, a Vós, Filho de Deus?
– Reflete, amada mãe, pois não sabeis
das coisas de que devo me ocupar?
Por que me procuravas? Vai-se o dia,

e há uma Cruz já talhada para mim.
Naquele alto aonde irei morrer
padecerei na dor em morte humana,
sê forte, Mãe, meu espaço é o infinito.

 

 

***

 

 

É a pregação da Lei, da lei do Amor,
proclamada no espaço em que vivemos.
Três dias se passaram e os doutores,
ali refletem, atônitos, e só ouvem

o ensinamento sábio do Menino.
Eis o modelo grato, esse tesouro,
e o Senhor, ressurreto, neste altar –
feito carne o seu verbo, e este verso.

Contemplar a verdade é ser feliz,
mesmo se a vida é acre no conforto
num mundo sagitário e que não diz
dos olhos que se voltam para o outro.

Antevê-se, na fé, a recompensa
das horas amargadas em exíguo tempo.
A visão do antevisto banha os dias
em dissabor do sal dessa alegria.

 

 

(Maria da Conceição Paranhos Pedreira Brandão nasceu em Salvador, Bahia. Poeta com vários livros publicados. Exercita outros gêneros, nos quais também tem livros publicados (ficção, crítica de literatura e outras linguagens, teatro, vídeo, tradução, outros). Doutorada em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia. Seu mais recente livro publicado de poesia é “Delírio do Ver” (Rio; Salvador: Imago Editora, 2002). A maioria de sua obra é inédita (nove livros prontos e três em elaboração). Promotora cultural, fundou a Divisão de Produção Literária da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Os poemas aqui publicados fazem parte do, ainda inédito, “Poemas Místicos”)

 

 

 

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3 Comentários

  1. Maria da Conceição Paranhos Pedreira Brandão, nome-delta de ilhas de poder ancestral, as famílias da Bahia aí representadas em mando e pompa, dores e angústias. Grata Maria, por ter na sua sensibilidade a habilitação para falar da condição humana sendo tão cósmica e tão baiana. Seus pátios de canteiros ordenados nos lançam na crueza da vida entre movimentos profanos e sacros. Vc. é uma bruxa.

  2. Belíssimos os poemas publicados aqui, nesta Casa, por você, Conceição Paranhos. Já encontrei o Jorge Araújo neste espaço, és tu. Que felicidade!
    Contentíssimo por reencontrar não só os seus belos versos (belos é muito pouco para dizer sobre o que acabo de ler), mas aproveito dizer-lhe do carinho e amizade de priscas eras.
    Leila e Fabrício estão de parabéns por ter trazido essa bruxa, como disse a Alba, para que conhecêssemos seus mistérios e encantamentos.
    beijos, Conceição.

  3. A Maria da Conceição é minha prima
    eu gostava de a conhecer, é para isso
    que pergunto como posso adquirir este Livro de Poesia

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