Dedos de Prosa II

Gabriela Amorim

 

Foto: Jussara Almstadter

 

A filha da prostituta ou história de Natal

 

Essa bem que poderia ser uma história para ser contada no Natal, porque a prostituta já sente as dores do parto e é véspera de Natal, logo rebentarão os fogos e a bolsa amniótica. Também porque a prostituta na verdade se chamava Maria, apesar de ser conhecida na rua como Zula. A bem da verdade, isso não chega a ser um nome, é apenas um som para chamar uma pessoa, já que Maria parecia um nome muito sagrado e pobre para usar na vida.

Não sabia quem era o pai da criança. Tinha lá uma desconfiança ou, antes, uma preferência pelo marinheiro de olhos verdes. Um filho de olhos verdes. Teve medo de fazer um aborto, era muito medrosa. Havia uma sua colega que já fizera três abortos e, no último, quase morrera. Tinha muito medo de morrer. Não que aquela vida fosse boa… Tinha medo de tudo aliás, de ratos, baratas, de macumba, de velhas. No começo, também dos homens, mas esse medo, o tempo a fez perder.

Além do mais, tinha vontade de ter aquele filho, vontade de carregá-lo, brincar com ele. Tinha vontade mesmo era de ter uma boneca, coisa tão inexistente na infância. Desejou rever suas amiguinhas da rua para mangar da cara delas:

– Quem tem a melhor boneca agora?, diria ela.

Mas havia aquelas dores todas ali e ela não sabia o que fazer com aquilo. Não havia mais ninguém na pensão, era Natal e as moças estavam de folga, todas a festejar ao seu modo sabe-se lá o quê. Ela ficara sozinha com a barriga e a dor.

Mordia um lençol para não gritar. O suor empapava a camisola encardida. Ela estava sentada, muito encolhida no canto da cama. Olhando assim, parecia um anjo de altar. Não passava de uma criança assustada com uma barriguinha saliente, talvez tivesse 16 ou 17 anos. Chegara ali depois de passar alguns anos apanhando da vida e das patroas, trabalhando em casa de família. Não que a vida ali fosse mais fácil, mas pelo menos apanhava quase nunca. Às vezes tinha nojo, é verdade, mas todas as outras moças a tratavam como um bibelô e, quando ficou grávida, elas passaram a sustentá-la. Tinha muitas mães. Ela agora seria mãe também. Nunca tivera uma mãe, talvez tivesse tido um pai, mas não gostava de se lembrar disso. Fingia que sempre fora só.

As dores aumentavam, e ela só pensava na festa que estava perdendo, o vestido novo para a Missa do Galo estava dependurado na porta do armário. A vida pedia passagem para fazer mais um milagre. De repente, sentiu que ia parir, não saberia explicar o que era aquela sensação – o que a deixou apavorada de desconhecer –, mas sentia que um milagre estava por vir. Alguma estranha força fêmea a guiou no parto, como se o nome Zula, que era quase um balido animal, lhe tivesse convocado essa força não-humana de parir. Então, ela simplesmente pariu e segurou a criança desajeitamente junto ao corpo. Cortou o cordão com uma faquinha quase cega que estava sobre a mesinha de cabeceira. Depois, limpou-a (sim, era uma menina, o que já dificulta um pouco a viabilidade de uma história de Natal) com nojo no lençol cheio de manchas de noites passadas. Encostou o bebê no seio e ele parou de chorar. Nasceu franzino, um fiapo de vida, um milagrezinho de Natal.

Sou mãe, disse a si sem ênfase nenhuma. E havia alguma dor sublime nisso. Com a menina no colo, pensou que deveria dar-lhe um nome. Pensou que deveria dar-lhe ouro, incenso e mirra. Presentes, comida, alegria, uma vida maravilhosa, o mundo inteiro. Estava exausta e com medo. Não poderia dar nada à sua filha. Nem amor, que nunca tivera disso na sua vida. Nem leite tinha, os peitos murchos de não comer quase nada. Não poderia criá-la entre prostitutas. Não poderia fazer nada por aquele milagre.

Era um bebê feio, magro, engelhado, vermelho. Não tinha olhos verdes nem cabelos dourados. (Quem era o pai?) Colocou-a na cama e levantou-se. Vestiu o vestido de festa: rosa bem claro, sua cor preferida. Arrumou os cabelos. Como estava cansada. E como doía-lhe o sexo. Pior do que na primeira vez que se deitara com um homem. Tomou a menina nos braços e saiu. Na rua havia muito barulho, era Natal. Não havia brisa, mas a noite era mais fresca lá fora do que dentro do quarto noturno.

Caminhava lentamente enquanto pensava no que poderia fazer para salvar um milagre. Mas ainda era uma criança. As ruas eram escuras, a noite era escura, ela era escura, só sua filha era rosada. Parou num beco, exausta de caminhar, exausta de pensar, exausta de parir. Encostou-se na parede. Era um beco imundo. Pôs a bebezinha numa lata de lixo e deu-lhe um beijo na testa:

– Morra logo, minha filhinha, porque essa vida é muito ruim.

Cuspiu-lhe na cara com nojo e ficou olhando-a um pouco. Talvez quisesse se sentir penalizada, mas não sentia, não sentia nada. Tudo tinha ido embora naquele parto. Se afastou devagar enquanto a menininha chorava.

Talvez, no céu, uma estrela tenha se apagado.

Não contem essa história no Natal.

(Gabriela Amorim é escritora e leitora, jornalista, fotógrafa, cozinheira, aprendiz de costureira e de feiticeira, instrutora de yoga, caminhante. Escreve crônicas às terças-feiras no Portal Infonet. Seu primeiro romance, O velho, está no prelo e, em breve, deve vir à luz)

 

 

 

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1 comentário

  1. Acabo de ler, que conto fantástico e imagético! Excelente, para dizer o mínimo!

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