João Filho
NITIDEZ SUBMERSA
Nos sapatos confortáveis
um pouco velhos e gastos
a fuligem das cidades
redesenha o seu mapa.
Não me venham com saudades,
sombras, vultos e fantasmas,
o peso e a profundidade
das coisas não nos sufocam.
Dos caminhos caminhados
— avenidas, becos, praças —
multidões tumultuosas
na fuligem dos sapatos.
Pó do mundo respirado
em seu tédio corrosivo,
não escapam os voos altos
das naves mais arrojadas.
Na verdade, nada escapa.
É preciso a cada istmo
contra essa névoa cegante
renovar o gesto limpo,
porém não lave os sapatos,
não porque registre tantos
itinerários, andanças,
mil labirintos urbanos, a
fuligem aí pousada,
cartografia amorosa,
indica veios, filões
dessa nitidez submersa.
Alargue as tuas pupilas:
paciência ao inspecionar
cada trecho dessas nódoas;
nos interstícios, estrias,
nas grafias do diáfano,
se entrevê pela fuligem
a clara sustentação
dos fios frágeis do mundo.
***
SALVADOR, 1996-2013
Dos acidentes que a modelam
em luz e sal, essas escarpas
são os desenhos que mais pesam,
a vida em queda dos sem mapa.
Ali do alto, que é abrupto,
a cidade é curva contínua,
sinuosidade negativa,
abre-se em praias e ravinas.
Disseram gorda em seu amplexo,
digo salitre, vento Atlântico:
salga e apodrece em paradoxo.
Aqui se canta um velho cântico:
lá no São Bento, anjos mulatos;
em toda cúpula e pilastra
pesam arcanos e Evangelhos,
da vida menos a mais vasta.
No Santo Antônio Além do Carmo
o casario nada ensina;
sim, a não ser o som amargo
do que ruindo contamina.
Tudo externado? Não o âmago,
por isso engana quem a vê
cidade-entrega, as cores gritam
em cada esquina o seu não ter.
A precisão só vem de cima —
luz em ladeiras, luz marinha,
a luz em flor, a que combina
a dor do nu, o mel da vinha.
***
Para José Luís Franco
Esteve aqui, durante a tarde e nunca mais…
E lenta, lentamente, sua ausência cresce.
Mais uma. Porém, perdas não são sempre iguais,
e o tempo, irmão, nem tudo amadurece.
Dói e assusta qualquer resquício de presença,
falta é peso e não vácuo e silêncio,
pois arrastamos nossa carga imensa
nesta margem extrema que nos vence, e o
que temos e tocamos é tal solidão,
e mesmo as coisas mais amadas são amargas:
os valores sem níquel perdidos ou não:
dedicatórias, fotos, versos, as recargas
da memória tão vária na mesmice.
A carne arde só e não há lágrima
para dessedentá-la. Luz franca sem lástima.
No travo dos adeuses fica o que eu não disse.
***
DIDÁTICA
O áspero poema? Não mais quero.
O inviável abismo? Já descri.
Foi com inabalável esmero
que duramente me persegui.
Se tudo é insuficiente, espero.
O instante vence o tédio, senti.
Se a valsa mudou-se em bolero,
o ritmo pouco importa, vivi.
Pelo tropeço suavizei o passo.
Seu corpo é o sentido que devasso
devagar, como quem respira.
Gota que se equilibra suspensa —
a vida. Mínima que é imensa,
quando pensa que é real, delira.
***
LUZ PRIMEIRA
É possível que tão inquieto quanto este,
menos o acúmulo de desacertos de sua rota,
mais o céu primevo
e o azul bruto.
É provável que já fosse isto,
porém tosco a palmilhar seu sentido
e se assombrasse de estar desperto na disposição geral de tudo;
melhor não, nem mais puro,
não isso,
talvez intactos alguns caminhos,
e a relva e as águas e os bichos
fossem realmente mais livres.
A luz primeira veio com o primeiro grito,
e o invisível foi o medo mais duro,
porque o visto era em sua metade crível;
ao perceber que negar não era resolver,
a morte
foi o mistério mais agudo.
(João Filho nasceu em 1975, em Bom Jesus da Lapa/BA. Participou de algumas antologias, dentre elas: Contos sobre tela, Editora Pinakotheke, 2005, Brasil; Terriblemente felices. Nueva narrativa brasileña, Emecé Editores, 2007, Argentina; Travessias singulares – Pais e filhos, Casarão do Verbo, 2008, Brasil; Geração Zero Zero, fricções em rede, Língua Geral, 2011, Brasil; Popcorn unterm Zuckerhut, Verlag Klaus Wagenbach, 2013, Alemanha. Publicou Encarniçado, contos, Editora Baleia, 2004; Três sibilas, poesia, Dulcinéia Catadora, 2008, e Ao longo da linha amarela, contos, P55, 2009)