Janela Poética IV

Marcantonio

 

Arte: Julia Debasse

ATIVIDADE INTERNA

Há tanto dentro de ti
que não queres conhecer:
flores semi-enterradas
na tua aridez íntima
que não se dão
à carícia afásica dos teus dedos.

Há também um sol tresnoitando
que bronzeia a película das tuas veias,
e do qual não podes suspeitar
na tez pálida das tuas palavras.

Há um regato de vontades
onde peixes desmedidos nadam
– forçosamente anfíbios.

Há uma garça escura
em pé sobre teus intestinos
que bica o fundo dos teus olhos
tão logo comeces a ignorar a luz.

Há muito trabalho no teu interior,
polias, rolamentos e roldanas incansáveis.

Há sim uma oficina que quer abrir fendas
no sono eterno,
que faz hora-extra enquanto tu engendras
dicionários
sem saber que o que te obceca
é a palavra morte,
esse ramo da noite
que carregas durante o dia.

 

 

***

 

 

PLANAR E POUSAR

 

1 – Pluma

Os dedos trêmulos não conseguem pinçar a pluma,
Mordiscam o vazio, estrangulam a cápsula translúcida
Sem constância.

Nem os olhos conseguem acompanhar os espasmos fugidios
Da ciliada fração de asa, tão branca ocorrência de ignorância
Taxionômica.

Ó pluma randômica, em que esquina de voo poderias escapar
Da ideia de pássaro que te aprisiona?

 

2 – Osso

Em vão os dedos intentam escapes diagonais:
Não haverá força centrífuga
Que sagre as falanges distais
Em pterodátilas.
A qualquer quiromancia verruma a artrose
E o vento arrefece nas vias descencionais.

É para o chão que o osso ruma
A despeito da aérea gnose:
Calcifica-se a pluma.

 

3 – Pouso

O pensamento plumiforme
Não poderá tornar às asas
Do livrepássaro:
Perde impulso,
Pousa palavra,
Falta-lhe espaço.

 

 

***

 

 

MESQUINHEZ

 

Eu amesquinho as tuas asas
Enquanto ejeto os meus temores.
Assim, eu mesmo me torno mesquinho
E verto um vinho que não beberia,
Vinho acre de volume amazônico.

Nas vielas em que me vejo
Comigo mesmo não cruzaria
Se fora antes advertido:
É que estou vindo esse ser soturno
Com as mãos nos bolsos sempre.
Quem me garante que não trago
Neles escondida uma navalha
Para me desfigurar o rosto?

Ao menos sei que me avizinho,
E tenho um átimo de segundo
Para evitar a minha má companhia
Em sua descida aos subterrâneos.

 

 

 

***

 

 

ANGÚSTIA

 

Não há recorte no vazio
que espere pela palavra
como o desdentado espera
a prótese que o faça esquecer
dos dentes naturais;
ou como um sorriso sombrio
de bueiro aguarda uma tampa;
ou como uma tomada fêmea
aguarda os pinos;
ou como uma algema aguarda
os pulsos;
ou como uma sequência aguarda
um número;
ou como a casa do punho da camisa
aguarda o botão;
ou como um rolamento aguarda
uma bilha.

A palavra cai num largo vazio,
como uma pedra num cânion,
como na luz difusa do mundo
um parto.

Ou cai num meio fluido
(continente transparente, já ocupado)
qual um comprimido efervescente
no Atlântico:

não é dela a espuma  que vaza na orla
nem o som das ondas é o seu chiado.

 

 

(Marcantonio, natural do Rio de Janeiro, é artista plástico e poeta (ainda não editado em livro). Reside atualmente em João Pessoa. Escreve nos blogs Diário Extrovertido e O Azul Temporário. Seus trabalhos em artes plásticas podem ser vistos no blog-portfólio Cadernos de Arte)

 

 

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1 comentário

  1. Falas tanto da pluma em poesia tão densa.Um ser leve é intenso, não é? parabéns pela poesia.

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