Janela Poética IV

Alexandre Guarnieri

 

Foto: Pedro Alles

Foto: Pedro Alles

 

o átomo de carbono (i)

 
toda a vida contida numa exígua partícula,
– desdobrável de si própria –, equilibrada
sobre a mesma progressão desenfreada;
deuses ferveram-na numa caldeira aquecida
ante o clarão do big bang / cozendo-a por milênios,
lenta, nas tripas da mais velha estrela / e lá, aprisionada,
como o maior espetáculo da via láctea, além do limbo
centígrado dos organismos bioquímicos,
replicou-se a enzima de sua fina
(e elástica) matematicidade
// até que […]

 

 

***

 

 

|( os órgãos internos )|

 
\ ( persegue as vértebras a massa
dos sangues coligidos / ( dentre os quais
há indício, de que alguns ( mais ou menos
líquidos ) \ cada qual a seu tempo, distintos,
consolidem sacos do caldo biológico,
coagulados \ ( carnes que existem da diferença
entre si de seus tecidos / ( se especializaram
as células, em aparelhos e sistemas ) /
delas monta-se um puzzle cujas lacunas
se completam ) \ o corpo expande,
tanto quanto se destrói ( por escasso o cálcio )
no rígido osso que esfacela / ( conforme
a vida lhe habita, o conjunto luta
sob o mesmo pulso \ ( o mesmo insumo bruto
lhe insufla a labuta / ( plantada já
na samambaia dos nervos \ ( enclausura-lhe
a elástica amarra dos músculos / ( a obstrução
sob medida de uma única fornalha viva
) \ trocam fluidos entre si tantas partes
aparentemente separadas \ ( interno
o mar hemorrágico, apenas visitável numa
viagem fantástica / ( mas quando lhe autopsiam
a frio \ ( sangria & bisturis / ( se mostra,
um monstro sob as próprias ataduras \ (
o frankenstein exposto, que, apenas por medo
do escuro, só morto poderiam demonstrá-lo ) \

 

 

***

 

 

(| o crânio humano |)

 
compósito ósseo por sobre cujos orifícios inteiramente
desobstruídos, encaixam-se os módulos dos olhos,
narinas, da boca, e ouvidos; a tampa de louça calcinada
pelo couro (marfim fissurado sob cabelo) um trono
ocupa o topo desta cúpula; uma armadura de juntas,
parcialmente recoberta por ranhuras em cruz, pelas quais,
de sua furna interna (o antro intracraniano), escapam-lhe
tantos juízos – são pássaros em fuga deste recep
táculo craquelado; lacrado sob a caixa manchada do
crânio humano, jaz, moldado aos miolos, à forma de uma
noz que alucina e racionaliza, o gerador unigênito – razão
pela qual congelam o cérebro de um gênio –, de cada
inédita eureka, e de todas as idéias velhas, de séculos,
de décadas, guardadas em antiquíssimas bibliotecas; sob
o palato, escondida, esteve a língua quase retilínea (um
único músculo infatigável para modular todos os dialetos),
a dentição se encaixava, cobrindo-a, esta fila de lanças
fincadas, abaixo das maxilas, e na base da mandíbula.

 

 

***

 

 

[| a pele |]

 
homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu
neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre
pêlos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar
ou ressecar, contra as condições do habitat (algo
se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fibras);
seus sensores de calor vigiados de uma
torre de comando, enquanto é mantida viva, (hidratado
adequadamente cada intrincado recanto)
como a máxima peça, de uma alfaiataria das mais
complexas: seria tão errado reduzi-la ao tato costurando
ao tecido apenas um, dos cinco sentidos?

 

 

***

 

 

mecânica dos fluidos

/ o suor

 

c a d a   p o r o
u m       e s c o a d o u r o
p e l o   q u a l
c a d a     g l â n d u l a
s u d o   r í p a r a
………….r e s p i r a

s e    r e   p e l e
s e u      l í q u i d o
s e    r e     m o v e
s e u           v i s g o

é     o   q u e
…….p e r         m i t e
q u e      a
……..e p i d e r m e
s e     l i m        p e
e       t r a n s p i r e

 

 

Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia e está disponível online (no issuu.com). Publicou poemas em revistas e jornais. Em 2014, participou das antologias “Essas águas” (Org. Vagner Muniz, 2014 [ebook]) e “Hiperconexões: realidade expandida, volume 2” (poemas sobre o pós-humano; Org. Luiz Bras, Patuá). Seu mais recente livro, “Corpo de Festim” (Confraria do Vento) será lançado em breve. Email: alex.guarni@gmail.com.

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2 Comentários

  1. escandir na pele versos e o corpo é obra. bravo.

  2. Alexandre muito forte seus poemas, gostei especialmente do primeiro. Beijo carinhoso.

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