Janela Poética IV

Paola D’Agostino

 

Victor H . Azevedo

Desenho: Victor H. Azevedo

 

Esta esplanada não existe
é mais um sonho marcado
para acontecer talvez num Setembro
mas entretanto avista faróis
do último piso de um estacionamento.
Clandestinidade de luxo
que a cidade sabe oferecer
ao delírio de sair de si
nas horas mortas
encontramo-nos aqui
em lugar abusivo
o único sítio onde te consigo

Quando arrancares
o relógio da carne
não te esqueças de sorrir
ao virares
a clepsidra do oblívio.

E depois lava bem as mãos
que está um tempo sujo cá fora.

 

 
***

 

 

A vida às tantas se parece com aquela grande loja de artigos para o lar
que toda a gente conhece na Baixa mas entretanto
alguns sobem ao último piso para aproveitar a vertigem do panorama
e beber uma imperial no reino das águas furtadas
enquanto outros só procuram mesmo a secção das flores de plástico
e compram cascatas de glicínias
para enfeitar a sala e eventualmente um gancho
que prenderá o cabelo em dias bonitos

e todos juntos
uns e outros
encontramo-nos no espelho do elevador
e sorrimos.

 

 

 

***

 

 
Vício, forma mais violenta de estar vivo

 
A lei do espanto mandava em tudo
e nem tudo obedecia às leis.
De resto nada tenho a assinalar

Eu quis
voltar a entretecer-me de raiz
com outra curiosidade.

 

 
***

 

 

Um lugar ao sol e um tempo na sombra

 

Eu vim pactuar com o crime a esta praia
porque a geada aperta no hemisfério
do continente gasto
aqui no cérebro.
Porque sair de casa a meio da noite
em busca de sacrilégio
é arte
de aventureiro
que se deve provar
uma vez pelo menos.
Por essa gota de adrenalina suja
que fomenta a inconsciência
de Prometeu
como um revérbero
ao sair de si.
Eu vim
desafiar a imortalidade
do mal
que havia em mim.

 

 

 

***

 

 

 

Quantos cais este oceano permite?

 
Como um papel de parede
que descolando amarrota na queda
todas as vidas anteriores
e repõe no espaço dos fantasmas
a candura das paredes nuas
perfeita casa
como
tabula rasa.

 

Paola D’Agostino aprendeu a caminhar por volta de 1976 e desde então nunca mais voltou para casa. De momento reside em Lisboa. Seus livros chamam-se “Largo das Necessidades” (2006), “Este Frio e Outras Histórias de Amor” (2011), “Dançam; Dançam” (2014) e o mais recente “Catar Catataus”, um diálogo ideal com o Catatau de Leminski (três últimos poemas desta seleção). Tem textos espalhados por revistas e antologias em Itália, Portugal, Alemanha. Um dia tocará acordeão, talvez.

 

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1 comentário

  1. Muito bons todos os poemas. Destaco porque me atinge em cheio o Quantos cais este oceano permite.
    Um abraço à autora
    Maria Lindgren

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