Janela Poética IV

Nilcéia Kremer

 

Ilustração: Caroline Pires

 

Antiga

 

Tenho cabelos que alcançam o teto
a ordem inversa das coisas cravada no peito
a gravidade do gozo
o temor dos pés no chão
o último suspiro além boca

Trago gotas de alcatrão na memória
e uma pífia retórica
coisa de quem nasceu antiga
blefa com a vida
e não tranca as portas da alma

 

 

 

***

 

 

 

Adicta

 

Não menos que o vento
que te lambeu agora
não mais que as horas
que custam passar
soo o interstício
principio o precipício
que dorme em cada célula
libélula diplomada
em jornada atemporal

Adicta de insetos
veto monstros alheios
meu veio é agridoce
como a vida
qualquer semelhança
não é mera coincidência
é conivência de sol
e sal

 

 

 

***

 

 

 

Auto retrato

 

Tenho esta espera
estampada no rosto
um lusco fusco na voz
martírio de inquietos
fechadura conferida mil vezes
praga que não se entrega
Sou o que fica
a tiririca na grama
sou o acordo necessário
quando todos foram
o voluntário das palavras
a larva dos dias
a agonia sabor chocolate
que late late
e abocanha vazios

Sou o cio em carne
promessas descumpridas
feridas cicatrizadas
desvarios

 

 

 

***

 

 

 

Ungida

 

Ela gritava impropérios
cacos na boca
rouca e descabelada
Ela gritava impropérios
não há critérios em desanuviar
cingiu a testa marcada
saiu da engorda
negou o abate
fez alarde
acertou o tom
batom na boca
vermelho na veia
quente
Ela gritou impropérios
e o império de ajustes caiu
Ela juntou os pedaços
de coração quebrantado
desajustada e desmedida
ungida em amor
Próprio

 

 

 

***

 

 

 

Nômade

 

..pinçar coágulos encravados
redesenhar alentos
rede
moinhos de todos os matizes
perder a conta que acrescenta
sustentar-se por tentáculos
abraçar variáveis que mudam de estação
um porto volúvel
um corpo aparente
de crescentes naufrágios
imensidão de rascunhos
um ser inscrito em palavras

 

Nilcéia Kremer é gaúcha, ariana nascida em 80. Das Letras por formação tornou-se conjuradora de palavras. Apaixonada pela arte já provou um pouquinho de várias linguagens, e descobriu que o melhor sabor se dá no encontro entre elas. Crê na arte comunhão. Tem poemas publicados nas revistas Plural (Scenarium), Mallarmargens, Limbo e O Emplasto.

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1 comentário

  1. A poetisa sabe de seu ofício Gostei muitíssimo dos poemas
    Maria lIndgren

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