Janela Poética IV

Edson Valente

 

Valéria Simões

Foto: Valéria Simões

 

PÊNDULO

 

Poço químico
Tristezas em risco
Limpo, águas em fúria
Deixar o socorro à natureza
Ou pintar estrelas no muro
Monte de nervos à solta
Em desonra à criança
O vício da cólera
Contra a própria cabeça

Peito trancado cuidado: risco de morte
Diz a caveira
Navego onde não posso aportar
O cínico embargo
Do desejo sem fronteiras

Noite, casa vazia
Alguém me bate à janela
Teu beijo
Ou a doce chama
Do fim

 

 

 

***

 

 

 

ANTICRISTO

 

A ferida que tenho na mão
Não é de um prego, eu mesmo a puncei
Em outra circunstância aguda, em meio
À perturbação
Não perdoei ladrões, prostitutas, o desvalido
Juntou-se a eles para roubar um banco
Mas sem render ninguém, que somos
Gente de bem
Quero ser julgado apenas pelo que não fiz
Definhar entre paramédicos
No espelho negro de Alice
Doar meus órgãos pra quem não me suporta
Deixar livros e discos para os amigos
Entre as incertezas que sigo
As águas andaram sobre mim levando
Alguma coisa que restava de esteio
Sei que quando Lázaro,
Violinista bêbado falido que toca em frente ao
Conjunto Nacional,
Viu-me chorando sorriu
Dei-lhe dois reais para que tocasse a
Música de meu cortejo
Como oração de um infeliz
Que se esqueceu a que veio
E se perdeu por aí –
Ao final do passeio
Enquanto se fechava um olho
O outro viu o sinal se abrir
Quero ressuscitar em teus braços
Assim como morri

 

 

 

***

 

 

MONTANHA-RUSSA

 

Cume: teus olhos
Linha do chão: o que sempre fui
Antes de teus olhos
Esse ir e vir infinito
Entre estrela e poeira morto
Na velocidade do que não me
Pertence

Na insaciável mudez do verme que
Espreita
Expectativa enquanto trajeto
No pé da colina
Ultrapassando nuvens como pedras no limite
Da trilha

No instante em que tudo se
anula
Entre voo e queda
Enredo e cisma
Arrebento redes e cintos
Morte vencida

Criança
Em nave-balanço
Que olha acima
Por sobre os ombros do espaço
Estrada além do cume
Ponto de partida

Teus olhos, meu chão: o que
Serei
Sem volta
Em longa estada
Novo impulso de
Vida

 

 

 

***

 

 

I – ABSTRACIONISMO

 

(Sortilégio)
O que o osso
Apreende da carne
E incorpora à sapiência
Do chão
(há chão, enquanto)

Reentrâncias
O não dito do caule
Brota nas folhas
Umidade esquecida
Prenúncio
Voz da partida

(eterno retorno: pintura refeita)
Arroubos pictóricos do clima –
Saúda-te ao chegar
O paralítico entorno, campina de
Tua revoada
(o ajoelhar de um pôr do sol)

Perplexidade, miasma
(Teu pouso faz o meu voo)

Era eu natureza morta
Sombra a pinceladas

Redivivo
O além-esboço
Perfeição falseada
– um traço que se regenera –
Preconizados na paleta
Vermelho que ornamenta a fala
Moldura ciliada que pisca e entrevê
A dinâmica do abismo
– então, essa, verdadeira –

Insensatez da ponte
Nunca dantes cruzada
E as quedas do mesmo, incontido, inconteste
Ecos da explosão primária
– tudo você e eu e o sol e o osso surgidos do nada –
(a cegueira do contraluz)

Cor o persistir na procura
Do original perdido
No tom inapreensível da tua
Arte abstrata

 

 

 

***

 

 

 

PONTES

 

Abstrata
Aquela minha pergunta
Esqueleto da conexão
Sem lastro

De um verso solto
A métrica imaginada
O vão sem os pilares
Letreiros apagados
No acostamento
A contramão dos fatos

O desnível
Entre o corredor e o quarto
– Hiatos –

Quem amou bem sabe
Que a resposta ao amor
Está fora do prumo
No que a moldura esconde
Daquele trecho não restaurado
Do quadro.

 

Edson Valente é jornalista e autor dos livros Refluxos (Ateliê Editorial, 2010) e Pow-emas e outros jabs líricos (Editora Patuá, 2014). Seus poemas e contos já foram publicados nas revistas literárias Arte e Letra: Estórias, mallarmargens e Walking in Briarcliff e no jornal mexicano Despertar.

 

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