Clarissa Macedo
Alguma coisa de fé
Eu não tenho religião
(senão a poesia que me leva aos céus)
mas tremo com os sinos
que uivam badaladas
em todo dorso de tarde.
Eu não tenho religião
embora acolha a pompa dos templos
na solidão de algum dilema.
Eu, que não tenho religião,
me sacralizo
com os guizos do tempo
e me purifico
com a ausência de um deus feito de homem.
***
Oásis
O deserto é uma janela aberta:
o que escapa de seus camelos,
forjados n’água de vapor e sal,
é o calcanhar de todos os desejos.
Nas areias feitas de mistério
conta-se de terras que jamais fui.
Lá, os fantasmas de meu rio seco.
***
Aceno
Lâmina afiada
dobrada no peito
Fenda aberta
onde escapam
deuses
Lua que derrama
um deserto
de agulhas
Chamas que queimam
estrelas
Tudo reunido:
a dor do adeus.
***
Aborto
As redes lançadas não trouxeram peixes
Tragaram luzes e pomos abandonados.
Os peixes que não vieram estão mortos
Como o poema que acaba de nascer.
***
Fenda
Há tempo o menino ficou lá fora.
Espera, espreita a barra da porta,
mas já não pode passar.
Todos os longos anos de preparo –
escola, dentista, boxe –
e a busca pelos jogos de montar,
pelo seio roído da mãe que já foi.
Uma vida de busca e solidão,
a passagem do peito fechada:
só o túmulo aberto da infância.
***
Irmandade
Qual a cor do teu drama?
Quantos lares saem de teus cabelos?
Com quantos homens se reparte
o último fio de desespero?
Em tempos de paixão e fome
os credos são maiores que as roupas
os voos maiores que as asas.
Clarissa Macedo, doutoranda em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora e pesquisadora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e fora do país, integrando diversas coletâneas, revistas, blogues e sites. Publicou “O trem vermelho que partiu das cinzas” e “Na pata do cavalo há sete abismos” (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, 2014).