Janela Poética IV

Myriam de Carvalho

 

Foto: Antonio Paim

 

Teoria da Música

 

Por vezes, a minha Fada ausenta-se. É
caprichosa, vagabunda, peregrina.
Fico de mãos a abanar, menina
perdida, sem pátria nem lar.

Mas quando regressa, cantam as ervas
na beira da estrada,
as gaivotas desafinadas,
as andorinhas estreloucadas!
Até as ondas na balaustrada,
até as pedras pisadas da estrada.

A minha Fada regressa. Um dia ao acaso, sem aviso.
Não bate à porta. Entra naturalmente, instala-se.
E os versos saem, de improviso, num sorriso impreciso mas
conciso.

A minha Fada, minha Deusa, minha mãe
e minha irmã
Essa mãe que não tive
E me tem valido – sábia como um divã

 

 

 

***

 

 

 
O chiar desesperante dos pardais
e o grasnar das gaivotas
A leve aragem marinha,
os ruídos da autoestrada
Despertadores infalíveis
da manhã da praceta

Ainda descolorido, o sol
começa a aquecer as vidraças da janela
Um avião cruza com estrondo o céu
ainda embaciado

Calam-se os últimos pardais
Fica no ar o chilreado de alguma andorinha
Os primeiros carros começam a arrancar
da garagem nocturna sob as estrelas

Mas eu tenho a minha estrela
Uma, que brilha sobre os tectos dos prédios
Haja sol ou haja vento,
Seja dia ou seja noite
Senta-se comigo ao computador,
diz-me as palavras certas
Maternalmente, afaga-me os cabelos
“aqui está bem”,
“aqui, é para alterar”
E bebo mais um golo de água, e
vou roendo uma maçã

 

 

 

***

 

 

 
Escolho as palavras como quem escolhe
as pedras da calçada que não magoem os pés,
ou como quem escolhe as pedras menos
escorregadias por entre as poças de chuva,
ou como quem escolhe as passadeiras
mais seguras para atravessar a ribeira…

As palavras existem anteriores a nós… dádiva
das gerações passadas… antigas
como o Tempo…

Têm Fogo nos pés como Mercúrio,
Têm Música no coração, como a Noite,
Fazem amor entre mim e o papel

As palavras são violetas de estufa…
Precisam de Ar, e de Luz suave
para não lhes queimar as folhinhas

As palavras fazem-me dançar
Batem-me o ritmo no contraste
das oclusivas,
Adormecem-me os passos na toada
das nasais,
Abraçam-me
no jogo das vogais…
Dão que pensar nos símbolos e
nas metáforas…
Esmagam-me se rimo.

As palavras têm que estar maduras
como as uvas para a vindima

 

Myriam Jubilot de Carvalho, 1944, portuguesa. Foi professora. Representada em várias antologias e revistas. Divulgadora da cultura e poesia do período do Al-Andalus. Colaboradora no jornal “O Autarca”, de Moçambique. Publica no site brasileiro “Recanto das Letras”. Três livros de poesia publicados.

 

 

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1 comentário

  1. Que boa companhia e que falta nos faz, quando por vezes ausente, a nossa FADA, por “caprichosa vagabunda e peregrina”!. Mas não há bela sem senão. Ela vai voltando. Fazemos parte da sua magia, para assim poder revelar as suas artes. No entanto, na ausência, a nossa estrela estará presente e brilhando nos vai encaminhando para as palavras já maduras.

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