Janela Poética IV

Nuno Rau

 

Foto: Kristiane Foltran

 

 

73.
Certas tardes de verão (ou seria
daquele tipo de inverno onde o sol
ainda se esmera em grafar na pele
flores rubras com sua luz de agulhas
todas em brasa e imateriais) banidas
agora para um limbo que tantos
nomeiam (pelo mecanismo turvo
dos sentidos) de passado, limbo
que concentra, entre outros, o instante
em que talvez confuso, talvez
indiferente, você percorria a orla
do primeiro verso, que é
um território raso onde tudo
se desfaz, se confunde e nunca
mais retorna (o que lhe deu prazer
ou desespero), mesmo que em
seu mundo imaginário, você
projete o corpo imerso
num rio sem fluxo onde
as águas estanques apodrecem
seu melhor sorriso, seu gesto
mais luminoso, seu maior ardor
e, claro, de todas a mais infundada
(como de resto cabe a qualquer
formulação) fé, cicatriz
da esperança.

 

 

 
***

 

 

 

77.
Outono ardente (tantos anos
depois de outro verão, gelado
até a medula, mas como se
coladas, por um estranho salto
da história, uma estação
na outra), pura sangria, ainda
que não se saiba se haverá
espetáculo todo dia em seu
circo particular de horrores,
os olhos querem desgastar
imagens, repetir, repetir,
no disco arranhado do tempo
em que a lua gira sem eixo
e você pretende, mais uma
vez, desarmar a metafísica
por dentro e expor a carne
à sua natureza e seu destino.

 

 

 

***

 

 

 

81.
Mundo estranho, miragens
em movimento sob o sol
natural, vasto mundo plano
e você deu tantas voltas ao redor
sem perceber qualquer falha, seguindo
sem cosmologias no universo
circunstancial, acidental (“se calhar,
se calhar”, alguém disse), restando
amorfo como este século de luzes
intermitentes, ou como quem errou
de endereço indo ao lugar
certo, ou devorando miragens
à margem de todo sentimento,
em larga escala, em alta
rotatividade, ou bancando
um vinho forte para cada alma
que sobrou dentro de sua cabeça
depois da grande
explosão.

 

 

 

***

 

 

 
82.
Estende um infinito entre você e a paisagem, tão perto,
cortinas de vidro se liquefazendo à frente
dos seus olhos e os dias decapando camadas de asfalto: cada uma
contém em seus mapas impressões do absurdo
que teve por destino transportar, surdamente,
na treva ou sob o sol – “um corpo”, ele disse,”e não ouviu
as coisas todas gritando
à sua passagem, as coisas
aturdidas diante da agressão
de seus olhos”. Limites, exílios, silêncios,
viagens sem volta, abismos
entre as coisas e as palavras, você
pulou porque quis.

 

 

 

***

 

 

 

84.
Nenhum amor pela cidade, muito
pelo contrário, rancores
cuidadosamente cultivados como
flores, feridas
expostas ao mesmo ar que alisa
a superfície de tudo, contínua,
como se a beijasse, ar
que nunca ampara ainda que envolva
gelado ou turvo, tanto faz, no mundo
estreito – você formula
absurdos como erguer paredes contra o ar
tornado vento quando imagina
ele trazendo mensagens do passado em forma
de lâminas ferozes, mas lembra
que paredes são memória
dura; formula então
torná-las labirinto, emaranhado
onde se possa encapsular
a brisa que lhe arranha
a pele, e pensa mais, grafites
que apontem miragens onde perder
o corpo,
grafites por toda a superfície
alçada contra o ar, pura
vertigem, nenhum
amor pela cidade, nenhuma cidade
possível.

 

 

 

***

 

 

 

85.
O números das casas, dos carros, os números
dos telefones, números
dos anos cifrados sob os poemas,
na imagem das ruas traçar rotas
aleatórias conjugando
os números em camadas de uma pele
sobre a cidade, você
tenta decifrar sem bisturi tudo que não sabe, ou seja,
isso que um dia alguém ousou
chamar de real.

 

 

 

***

 

 

 
86.
Cidades são reais, o pensamento
não se sabe, cidades são
reais, meu chapa, sejam fossas
geladas ou panelas de pressão, chapa quente,
tanto faz, ruas emaranhadas ou largas
avenidas são labirintos (“toneladas
de pedras ao alto”, ele disse)
porque espelham o que se forma
por dentro, em precipitação (aqui você
repete o delírio recorrente
de encontrar a explicação
que não existe, de arremessar fora de si
paisagens da imaginação – não, estas
paredes que o pensamento ergueu
por dentro são outra
formulação alucinada
do seu desespero, o mesmo
que arriscou metamorfoses, uma
atrás da outra, até
desembocar no espanto de ser
de novo não mais
que o mesmo
-“agora, agora”-
do começo).

 

Nuno Rau é carioca, arquiteto e professor de história da arte, mestre em história da arquitetura, e tem poemas publicados em revistas e sites como Cronópios, Germina, Sibila, Zunai, Mallarmargens, Diversos e Afins, RelevO, em diversos blogs e nas antologias Desvio para o vermelho (13 poetas brasileiros contemporâneos), pelo CCSP | Centro Cultural São Paulo, Escriptonita: pop/oesia, mitologia-remix & super-heróis de gibi, que co-organizou, e29 de Abril: o verso da violência, ambas pela Editora Patuá e, em fase de organização, a antologia Poemáquina. Autor do livro Mecânica Aplicada (2017). É um dos editores da revista eletrônica Mallarmargens.

 

 

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1 comentário

  1. Belíssimo livro de Nuno Rau.Recomendo a leitura.

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