Janela Poética IV

Helena Zelic

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

meninas

 

faz tempo
um poema que expresse
amor
só o amor, sem tempos duros
sem pratos quebrados na parede
e a angústia das lâmpadas

pensei
que estivesse o corpo intacto
que já não sentisse nada mas
o amor, esse escafandro
escancarado
crescendo as plantas marinhas

a gente deu as mãos
pensei de brincadeira
não consigo escrever esses versos
sem pensar em seu rosto
e seus cabelos
alguma coisa aconteceu
no meu organismo
não consigo imaginar alguém
que leia este poema
e não veja nele
o seu rosto e seus cabelos
meu rosto
meus cabelos.

 

 

 

***

 

 

 

cidades perdidas

 

existe são paulo e as multidões
a garoa e a chuva ácida
sobre os capôs, chapéus e cabelos.
aquela são paulo que,
dizem,
não existe mais
existe em santos
nas praças do centro
e nos tijolos das velhas indústrias
em meio ao fogo
dos despreocupados.

não tenho conhecimentos
químicos ou de vida
para saber se o tijolo,
no fogo,
derrete
ou vive.

minha tia anda pelas ruas
de santos
e se entende nas calles cubanas.
as vielas de salvador
têm as formas de Cuba,
para ela
todo lugar é a saudade de La Habana
e das casas de andares altos
que o tempo cortou no meio
para caber mais habitantes.
por fora, as portas são altas,
ainda são.

nenhuma cidade deixa de existir
quando se torna exemplo
dos postais, das réguas
da arquitetura
das utopias.
a memória nunca pode ser
armadilha das mudanças.

 

 

 

***

 

 

 

os clássicos

 

quem sabe quais seriam
as palavras de Safo
censuradas pelo tempo
[pela igreja católica]
abarcadas como ilhas mudas
pelos colchetes e chaves da história?

quantos beijos na boca
quantas bocas
[quantas? como?]
a despeito de menandro e apolo?

o que sussurravam as mulheres
nos ouvidos?
um mundo em festa.

os fragmentos das letras
são lacunas do encontro
entre uns corpos e outros.

há amores como há embarcações
e somem no mediterrâneo,
enormes e invisíveis.
[um mundo em festa!]
mais que ilhados,
subaquáticos.

 

 

 

***

 

 

 

um narrador que grita

 

nunca, nesta vida ou nas próximas
poderei escrever como uma poeta portuguesa.
posso imitar os versos grandiosos
de uma poeta portuguesa
posso copiar os sentimentos precisos
de uma poeta portuguesa
posso falsificar documentos
como faz a decadência das fronteiras
sem pátria e sem trabalho
duas casas e nenhuma.

posso dizer que sou
e assim chegar ao limite
convencer alguns católicos
não-praticantes do ofício da fé
andar nas ruas como uma poeta portuguesa
erguer talheres como uma poeta portuguesa
falar dos mares e do amor infinito e súbito
como o faria uma poeta portuguesa;
como se sozinha o detivesse
no centro do corpo
contra os monstros marítimos.

posso fingir que compreendo e que me espanto;
posso escrever como uma subdesenvolvida
a fingir que conhece a solidão do hemisfério norte
e os cânones das bibliotecas
que nomeiam ruas, escolas e tentativas.

posso esculpir um pássaro e narrar seu voo
como se voasse.
como se existisse para tal fim.

posso contar as pérolas
dos pecados da ave maria
(em segredo sepulcral).
mas nunca, sob hipótese alguma,
poderei escrever como uma poeta portuguesa.

são outros os meus heróis.

 

 

 

***

 

 

 

um lugar no mundo

 

que aquele rasgo na noite
seja um astro satélite
parece impossível

a distância tamanha
aproxima água e minério
a perder perspectiva

no meio do caminho
um abismo de sombras
pedágios, cavaleiros e dragões

o medo de altura
da humanidade visível
nas pedras que cortam a China.

 

 

 

***

 

 

 

mitos

 

como um país que não se esquece de seus mortos e seus vivos
como um povo que resguarda a língua anterior às fronteiras
porque são eles mesmos a língua,
a língua é eles
como tua capacidade de amar novas pessoas
e reconhecer perfumes antigos
e querê-los, porque assim respira mais.

como a dura revolta de nossos ossos,
como as multidões que se levantam,
tu tem direito à tua história.

 

Helena Zelic tem 21 anos, é estudante de Letras, comunicadora, militante da Marcha Mundial das Mulheres, coordenadora de literatura da revista Capitolina, poeta e autora de “Constelações”, publicado em 2016.

 

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