Janela Poética IV

Tassyla Queiroga

 

Pintura: Cláudia R. Sampaio

 

Vácuo

 

é possível convencer um corpo a entrar em movimento
desde o ventre
e se arrastar pra onde queira
o ponto que divide dentro e fora
é uma órbita
o umbigo é a primeira mamadeira
um oco enfeitado
que nunca se preenche
o buraco
precisa se manter limpo
o conceito de caule e seiva
nasceu da primeira
mãe
feita de instinto
em tempos tão remotos que nada tinha nome
cordão umbilical virou ponte
por onde o fermento entra
a coragem nasce na placenta
e não abandona
o umbigo
feito criança
precisa se manter limpo.

 

 

 

***

 

 

 

Tipo 9

 

da horizontal da cama à cozinha conto 12 metros
de poeira e coisas por arrumar. a vitrola
travada em Caetano denuncia: tudo
fora da ordem. me dissolvo em
preguiça, tal qual prego
enferrujado e da janela
do quarto vejo a
disposição do
vizinho
na varanda
varrendo e fumando
cigarro marlboro às 9 da manhã
acordar cedo no sábado é a nova revolução russa
eu ativista da paz
dissidente volto
a dormir mais.

 

 

 

***

 

 

 

Disparo

 

qualquer palavra é gatilho pro poema
o pensamento-som
viaja na velocidade da luz
e qualquer som é também gatilho
pra trilha sonora do poema
basta um batuque
pra se inspirar basta estar
vivo
e atento
como uma roleta russa
basta um disparo
pra que eu não durma
e o gatilho dos meus sonhos é o teu nome.

 

 

 

***

 

 

 

Terceiro andar

 

construir paredes com fendas
te dar a chave da entrada
empurrar os móveis pro canto
sala palco pra te ver dançar
bolero de frente pro espelho
arrumando a mala ao contrário
todo dia esquece uma peça
todo dia um convite pra aquietar no meu peito
o felino insaciável
leão rouco rindo de velhas piadas
roubando seu lado da cama
e nem existia lado antes da sua visita
você toma muito espaço
mal respiro
o cigarro na varanda é retrato
em preto e branco
do teu corpo
que eu rego todo dia
aluguel de uma história como essa não se paga
conjunto de talheres de prata
bibelôs de porcelana
mobília de dentes expostos
o muro frágil que construímos
entusiasma meu sarcasmo
distribui meu sangue em tua artéria
e veja: a matéria prima
dos encontros
é feita de saliva e cerveja
na calçada suja de um bar vazio
o assunto da conversa é teu nome
pronunciado pela minha boca
doze vezes antes da primeira vez em que você penetrou
a casa onde morava
a velha senhora tímida e seus gatos famintos.

 

Tassyla Queiroga é escritora paraibana, residente em São Paulo. Já participou de alguns saraus e reúne poemas para a publicação do seu primeiro livro.

 

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