Janela Poética V

Floriano Martins

 

A NOITE EM QUE UM ANIMAL FABULOSO RENASCE NO NINHO DE TUAS MÃOS

Imagem: Floriano Martins

 

As tuas mãos tateando verbetes em minha pele.
Descobrindo onde dormia o verão. Despertando um balé profano em minhas vértebras.
Anunciando um beijo a cada sensação de desmaio.
As tuas mãos são o meu gerúndio preferido.
À noite escuto apenas o rumor das ondas de meu mar interior.
E uma voz que reconheço ser minha deslacra outro abismo com sua gramática imprecisa:
Eu sou tua, você me roubou, seu diabo!
Os meus mamilos se multiplicam e desarvoram a paisagem salpicada de lábios.
A sombra de tuas mãos imersa em minhas águas primordiais simula a dissolução de
tudo quanto fui.
Eu me recupero em tuas nascentes. Como semelhante de teus sonhos.
E não vim nem mesmo para ficar. Tu me revelas a descrição de uma lenda esquecida.
Decerto a ela retornarei.

 

 

 

***

 

 

 
RELATO DUVIDOSO DO QUE SE PASSOU CERTO DIA DO QUAL NINGUÉM RECORDA UMA SÓ PALAVRA

 

 

Imagem: Floriano Martins

 

 

A história foi toda escrita ao contrário.
Só assim resultaria permanentemente desacreditada.
O tempo se arrasta como um símbolo perdido.
Um pássaro aplicado à linguagem tentando descobrir uma função para o excesso de
aspas.
Púlpitos são comprados em brechós.
A memória jamais deixou de ser abundante e perversa, como uma escada largada na
garagem.
Aos que não vivem sem um oráculo, consultem a escada, consultem os brechós.
Há uma longa distância a atravessar entre o que vemos e o que não conseguimos tocar.
Querem mesmo saber o que houve naquele dia?
Tudo parecia despertar deslizando na matéria de nossa percepção.
As dádivas da perda se associando às lágrimas como um dragão dominado pela
assimilação demoníaca.
Como nunca, eu desejei ser o abismo do mundo.
O que vi foi a minha filha expirada em mim, a minha vida tomada como uma alusão
volátil, um rio de sangue e mais nada.
A eternidade nunca faz parte da cena.
A vida mói o espírito, o princípio e até mesmo os anjos não adaptados.
Eu teria me desfeito em sangue por ela.
Deus algum saberá até onde eu fui.
Nem importará sabê-lo, pois não importa o mais implacável de todos os destinos.
A minha filha se foi dentro de mim, consagrada ao vazio como uma espécie perdida.
Os dias felizes são tangíveis.

 

 

 

***

 

 

 

O ENIGMÁTICO SONHO DE ROSALÍA DE CASTRO NO ALPENDRE DE SUA CASA EM TEMPOS VERDES

Imagem: Floriano Martins

 

 

Parte do que fomos jamais conheceu uma outra versão de nossos abismos.
A noite percorria com inquieta intimidade um labirinto de sonhos que teimávamos em
decifrar.
Uns pássaros rascunhavam na escuridão a imaginária linha do horizonte,
até que o calor de teus lábios testemunhasse nossos corpos reescrevendo suas formas.
Atrás de uma pequena coluna, cada abraço parecia abranger um mistério propício.
Apenas o teu sonho colecionava metáforas entre satisfeitos gemidos.
Tudo isto quando o alpendre da casa recortava teu sorriso e com ele compunha uma
trilha de inquietudes, teu olhar finalmente decidido a incendiar-me as miragens.
Metade de teu corpo ficou presa na cama em que nos encontrávamos.
Eu nunca pude entender como voltávamos um para o outro e recomeçávamos a partir do
que havia sobrado da noite anterior.
A outra metade acumulando sombras antes que o sol desaparecesse.

 

 

(Floriano Martins (Brasil, 1957) é poeta, editor e ensaísta. Dirige a Agulha Revista de Cultura. Entre os seus livros mais recentes, se encontram Autobiografia de um truque” (2010) e Susana Wald – La vastedad simbólica” (2012))

 

 

 

 

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1 comentário

  1. Florino Martins é sempre surpreendente!

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