Janela Poética V

Marília Miranda Lopes

 

Foto: Bruno Kepper

 

Posso entornar
raiva
desmesura de medos contidos
sem que me prendas
dentro das tuas sílabas de aço

Posso aliviar
o chumbo dos ombros
nos passeios e becos onde tropeças
embriagado…embriagado.

A dor é uma rua anônima
onde já não mora ninguém

Guardamos tanta inutilidade

Ainda haverá espaço
nos silos da memória?

Posso dizer-te a poesia que faço e desfaço
nas minhas viagens
Sem que me leias
Na distância das tuas margens

Assim estou só e não espero nada
A não ser o espanto…a não ser o espanto.

 

 

***

 

 

Não lhes dês acesso ao teu estado
vigilante ou adormecido, inquieto ou sereno
nenhum sopro de vigilância
onde a pele se queime de píxeis

Não lhes dês réplicas e cerimônias de caixões de vidro
ou a face pálida, diante do melodrama da história

Dá-lhes o cerne desse gosto natural
onde o romper do caminho é o nascer de uma ovelha
e o seu primeiro berro

Esta estrutura de ferro e betão tem-nos mendigos
em tecidos quase rotos

A caligrafia social é uma tragicomédia
Encenam-se códigos de conduta
liberdades adulteradas
escritas com revolta e humor forçados

Tudo está viciado e iminentemente caótico
Terreno fértil e propício
à serpente fascista
subliminarmente esperta

Há um gélido pavor
onde o rastejo espreita.

 

 

***

 

 

Quanta discussão
argamassa
e betão

Nos compartimentos
pesam lajes
Dor
neste cimento

Sem térmica a pele
Sem vigamento
metálico

Quase sufoco no pó
neste resto de dia gris

As plumas azuis bailam alto
Tangem
como acordes
a fluidez do sangue

Há uma paixão inexplicável

Ouço um Bach de prelúdios
e fugas.

 

 

***

 

 

Está frio e rebentam ecos
arquitectados
outonos

As folhas tremem
Os pássaros recolhem-se

O abandono é esta ausência velada

A terra húmida das chuvas
o caminho multiplicado
por gotas inteiras
sobre a curva dos ombros

Está frio e continuo a olhar
Estremeço
Como árvore despida

Abrigo-me: pássaro
Vertigem
em nenhum solo.

 

 

***

 

 

A cidade é um disco compacto
fervilhante
titânico
Os corpos de ipad editam
cada trajecto mínimo

A nave da Web
é uma barca antiga
atracada no precipício do tempo

Cruzam-se chips
entre nós, passantes em catálogo

Nas radiofrequências
um cibercéptico manipulado
um antibiónico em deslumbre
um hologrâmico
poema

Colapso

Já não funcionas
Sozinho

Colapso

Tens entranhas vigiadas
webcams na cama onde imerges
sem gotas de orvalho reais.

 

(Marília Miranda Lopes nasceu no Porto, em Portugal. Formou-se em Línguas e Literaturas Modernas (variante de Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Escreveu, entre outras obras, “Poesis em Oásis” (poesia, 1994), “Framboesas” (Teatro, 1996), “Aqua” (conto, 2012 – incluído na antologia Pegadas com autores portugueses e espanhóis – de A Porta Verde do Sétimo Andar) e “Castas” (Poesia, 2012 – Cadernos Q de Vien de A Porta Verde do Sétimo Andar – Galiza, Espanha). Tem participado, com poesia e prosa, em algumas revistas literárias e antologias (Portugal, Espanha, África e Brasil))

 

 

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2 Comentários

  1. Muito bons todos os poemas. Quem me der ser uma poeta como você! Parabéns
    Maria Lindgren

  2. poemas fortes, minerais, que nascem no sangue, na terra e se sustentam numa bela arquitetura. Vozes que percorrem caminhos de humana contemporaneidade.

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