Janela Poética V

Nuno Rau

 

Tomás Casares

Foto: Tomás Casares

 

matiz

 

não dá pra chamar de plúmbeo este céu, tampouco
argênteo, que um
afunda a sua dor num espectro
engalanado e o outro
aspira a um brilho que
não tem e assim
disfarça o céu que é por tudo cinza,
apenas cinza em sua solidez e lixa
em nossos olhos o que a  superfície opaca e rarefeita
aflora  de áspero: resíduo, pó, rescaldo
de um incêndio, também chamado, às vezes,
vida.

 

 

***

 

 

o que é a poesia?

 

depois que os pais morreram
voltou à sua cidade
para vender a casa antiga
onde passou parte da infância

cambiou a quantia obtida na venda
por euros
e transferiu o montante para sua conta
em Bruxelas
onde vivia num pequeno estúdio
alugado, 3 peças dando para os fundos
o que tornava muito silencioso
estar ali, exceto
nos dias de chuva quando as gotas
tamborilavam nas folhas
de zinco sobre a varanda

no ano passado foi encontrado
morto, um assassinato sem pistas que
deixou a polícia aturdida
mas a chuva
nas tardes em que chove
ainda reverbera no telhado
de zinco, a sua música
apenas abafada pelos
relâmpagos, quando isso
acontece.

 

 

***

 

 

loopingsufi

 

o ponto onde você dança é um ponto cego, na roda
do seu rodopio você lança um sorriso
para o mundo e ele devolve
um esgar, o mundo
tem a carne impressa com grafismos
ardentes que incineram
todos os planos quando os tocam, no ponto
onde você dança sua coreografia é a mesma
acupunturamasô em que você
dissimula imóvel as espirais
de seus pés cada vez
mais fundo na lama-glitter
do mundo.

 

 

***

 

 

prosa completa

 

se, como quem não quer
nada, sobre os lençóis (neste momento
os dedos se perderiam na maranha
reluzente e tão negra como o artifício
de um céu noturno um átimo
depois da explosão
dos fogos) fossem mencionadas ruínas
sob o azul, tão brancas
em sua opacidade
aflitiva sem dar
conta do sol
que as ilumina, e explodir (quando os mesmos
dedos se perceberem
úmidos e quentes) a lembrança
do púrpura e do carmim
que as revestia, o que está no centro é a vertigem
do corpo, e isso quer dizer
labirinto, ou a cara do anjo que agora
fecha os olhos, e se uma palavra
comoamorvier à tona
foi por apuro ou mera
distração – não se fala mais
nisso, e agora isto quer dizer clímax,
anticlímax, refluxo das horas,
espera, segredo,
surdina.

 

 

***

 

 

aquelas flores que sangram, se abrindo por dentro da sua carne

 

para helena n.

 

foi numa primavera hostil que deixei de entender você
e semeando ausências nos seus calendários
não vi as flores mortas nos jardins
onde depositei os simulacros de outros dramas
em que anjos distraídos se dissimulavam em pedra
ou no cedro dourado pelos crepúsculos dos adros
em naves escuras e vazias

já não me importa mais que as células sãs enlouqueçam
ou teçam abismos pelo corpo
sangrando névoa e nuvem
e descompassem a música das esferas
nem que o silêncio venha carregado
das palavras
esquecidas num tempo tão antigo
que ainda amanhecia:
foi no mesmo lugar que deixei o mapa
que ia nos levar de volta a um presente que não mais termina

agora
com todas as pontes arruinadas
vi pelo espelho dos metais que forjei um rosto
que representa a ilha
num mar transbordando cinza bruma e gelo

nesta outra primavera
nos acalenta o fio
que abre feridas sem resposta
aquelas em que (lançando imprecisões
nas cartas do destino)
definitivamente não
sei mais

 

Nuno Rau é poeta, letrista, carioca e leitor. Também é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ.

 

 

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