Janela Poética V

Marcelo Benini

 

Alessandra Bufe Baruque

Arte: Alessandra Bufe Baruque

 

 

Fazenda de cacos (o tempo)

Andemos perdidos por esses campos de flores
Onde a pele roça as pétalas no caminho estreito
O semeador de cacos fez um bom trabalho aqui
Nós, os desfigurados, corremos livres pelas plantações
Pisamos as pontas lavradas pela chuva
A mulher velha se abaixa para colher um souvenir
Em cada casa há um jarro com uma flor da fazenda
Belo mesmo é quando as gotas represam nas arestas
Onde o sol faz seu trabalho de secagem
E a plantação extensa ofusca os olhos
Miríades de pontas verdes, vermelhas, amarelas e azuis
Mar de coisas que já foram obra e adorno
Mas que na próspera fazenda agora semeadas
Aguardam a colheita diária dos cacos.

 

 

***

 

Fazenda de cacos (o trabalho)

Nas primeiras horas da manhã
Chegam para trabalhar os colhedores de cacos

Vão aos poucos silenciando

Enquanto trabalham
Permanecem com os olhos no chão

As rudes mãos escarafuncham a terra
Colhendo flores hialinas azuis, verdes e róseas

Sob o sol a pino se vê um mar de cacos
E alguns homens curvados com os olhos no chão.

 

 

 

***

 

Funcionária pública

Ninguém entendeu quando a moça da seção
Começou o concerto para piano número 3, de Prokofiev
No meio da tarde só ela ouvia clarinetes e violinos
Batia os dedos violentamente no teclado
Tremulando a melodia nos lábios
E jogando os cabelos no ar
As cortinas esvoaçavam na janela
Não houve pausa para o café
No dia seguinte os processos publicados no D.O.U.
Estavam todos em russo
E a moça digitava feliz uma carta de amor.

 

***

 

A caminho da luz

Arrancaram tua roupa de carne
E já não tinhas mais corpo

Eras apenas um olor de jasmim
Perambulando sem pressa

Foste visto no bar de sempre
Mas para espanto de todos
Pediste apenas que te deixassem em paz.

 

***

 

A vida dos obscuros

Os obscuros entram em casa pela fresta da porta
Instalam-se perto dos livros
E só saem às três da manhã
Os obscuros estão sempre atrás das portas entreabertas

Ao moverem-se pela casa
Sabemos que o fazem, pois ouvimos o ruído dos tacos
E muitas vezes sentimo-lhes a respiração
Sobre nossas costas

O tempo todo parecem observar-nos do escuro
Diverte-os que pensemos em coisas como
Vidas passadas

Os obscuros têm a respiração lenta e profunda
Adquirida em incontáveis noites nas bibliotecas públicas

Os obscuros podem ser vistos apenas durante o dia
Sentam-se normalmente na parte de trás dos ônibus.

 

***

 

Quadros em exposição

É sempre noite neste quarto
Onde se cometem crimes de adultério
Mas se da mesma insegura certeza somos feitos
Quem de nós fechará primeiro os punhos?
Se já sabíamos das paredes de caliça
E dos pesados retratos em exibição
Pranteemos não as ruínas
Pois como as tintas derramadas sobre o cômodo secreto
Os laivos também perdem força
Lamentemos apenas a exaustão.

 

Marcelo Benini nasceu em 1970 na cidade de Cataguases, Minas Gerais, e hoje vive em Brasília. Lançou seu primeiro livro em 2010: O Capim Sobre o Coleiro (poesia / edição do autor). Em 2012 lançou O Homem Interdito (crônica / editora Intermeios – SP). Foi publicado na Alemanha pela fundação Lettrétage, na antologia Wir sind bereit. Tem poemas e crônicas publicados em diversos sites de literatura do Brasil, América Latina, Portugal e Espanha. Em 2014 lançou Fazenda de Cacos (poesia / editora Intermeios–SP).

 

 

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