Janela Poética V

Patrícia Laura

 

Helena Barbagelata

Arte: Helena Barbagelata

 

solidão

 

precisa-se de uma solidão escolhida
uma bem vinda solidão vivida

precisa-se de uma dor incrustada na vida
vinda desde sempre e não tendo previsão
nem modo nem como sair

precisa-se de uma respiração divina
uma mão que pousa por cima
e escreve por mim

precisa-se enfim
de um começo
jamais de um fim

 

 

 

***

 

 

 

náufrago

 

num barco
q começa a afundar
o pânico ameaça

porque todos e sobretudo
os marinheiros só falam

obstinadamente
a língua das navegações

e nenhum fala
a língua
dos afogados

 

 

 

***

 

 

 

lázaro

 

incinerado
em segredo
sem amigos
em lugar
desconhecido

sem família
sem cerimônia
sem público
sem privé

a morte reinventada
parte imensa calada
queima sem alarde
sem brasa

o amor nunca precisou
de terra nem de fogo
nem de olhos ou choro

o amor
pó enraizado
esfumaçado em canto e mãos
de lázaro
cobriu as pálpebras
e se transformou

 

 

 

***

 

 

 

bambu

 

na altura do coração
nos tornamos surdos

relva bambu vento
surdos fomos o mundo

o templo a areia o irresoluto
semelhantes de esquecimento e ilusão

 

 

 

***

 

 

 

escuro

 
no escuro
tirando
o sapato
meio caindo
abrindo a porta
com cuidado
embriagada
falando baixinho
tropeçando e rindo
chorando um pouco
limpando o rosto
fazendo shhhhhh
com o dedo
no movimento
do corpo
no escuro
da madrugada
me flagrei
irremediavelmente
só e descalça
voltando
pra mim mesma

 

 

 

***

 

 

 

 

em segredo

 
que algumas coisas continuem
nos acompanhando em segredo
que a água entre nossos dedos
que o gesto desamparado
que o murmúrio derradeiro
que o medo o medo o medo

que a recém inaugurada
livraria da cidade
que a ternura do banco
que o desbotado do traço
que o pacto com o silêncio
que a praça a praça a praça

que algumas coisas continuem
nos socorrendo caladas
que a voz enrouquecida
que a vida despreparada
que o beijo que desafia
a infância abandonada

que a fala a fala a fala
que algumas coisas continuem
na coragem da viagem
no encontro com si mesmo
na aliança com o pequeno
na certeza do improvável

que algumas coisas permaneçam
nos guardando em segredo
nos dedos nas águas nas praças
nos gestos na entrega na fala
no consolo do vento
na miséria que apunhala

que a vida que não existia
que a neblina na vidraça
que o papel preto ardendo
que o lamento o lamento o lamento
que o que continua é o efêmero
no anseio no quarto desarrumado

 

Patricia Laura Figueiredo (pat lau), entre São Paulo, onde nasceu e se dedicou à poesia e ao teatro desde cedo, e Paris, onde mora desde 1990, amadureceu seus poemas numa vida dedicada a tornar o poema uma experiência essencial. Publicou o seu primeiro livro de poesias, “Poemas sem nome” (Ibis Libris) e seu segundo, “No Ritmo da Agulhas” (Patuá) em março de 2015. Participou de várias antologias, no Brasil e na Alemanha e também em diversas revistas digitais de literatura e poesia. Acaba de publicar, pela Editora Dasch, seu terceiro livre de poemas  “Poemas Bebês”.

 

 

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