Janela Poética V

Clara Baccarin

 

Suzanalatinibarco

 

Terra de refugiados

 

Refugia-se no coração,
que o amor não conhece fronteiras
Migra para a terra do sentir
que ela sabe acolher
com mais humanidade
Mora num poema
que ele tem raízes
em si mesmo
e fala todas as línguas

 

 

***

 

 

Escracho

 

À mulher resta o escracho
Faca fincada na fenda
da concha fechada
Força de esfacelar a lâmina
na dureza da casca
Cacos líquidos
Sangues ruídos
Nas mãos parir
as próprias vísceras
E ver pérolas se dissolvendo
na raiz do desmistificar
À mulher fica a possibilidade
de uma vida cedida ao escavo
de tudo o que não tem nome
e o que não pode ser
À mulher fica a cruel tentativa
de nascer num mundo de abortados
À mulher resta um desobedecer
macerar no peito e nos olhos
o certo e o errado

 

 
***

 

 

 

Escoa

 

Poesia
Palavras sem rédeas
Delatando sentimentos alados
Forma que deforma e aflora
Deflagra uma substância escondida
No buraco negro do inconsciente coletivo
Susto de uma nudez de alma
Que não se conhece do avesso
Mas, mesmo assim, escoa
Num ato desconhecido
De prazer ou de dor

 

 

***

 

 

Instruções para lavar a alma

 

Lavar a alma à mão
Que é de estrutura muito delicada
E assim, manchada de tantas palavras,
Requer cuidado redobrado
Para voltar a ser quietude

Secar a alma em solidão
Estender na linha do tempo
Do próprio quintal
Na parte que bate
Um sol coado, sereno
E faz pendurar as pálpebras
No sono dos que sabem esquecer

Passar a alma a limpo
Cortando os preciosismos
Os excessos prolixos
O peso dos desnecessários
Acessórios

Vestir a alma nua
Na sua mais nova pele
Nos olhos um brilho tranquilo
E uma vontade recém nascida
De ir brincar na rua

 

 

***

 

 

Porta

 

Viver em paz é saber
Entrar nos corações
Sem precisar bater à porta
E sair dos corações
Sem precisar bater a porta

Que amor bom
Entra sem esforço
E sai sem fazer barulho

 

 

***

 

 

Tirei o corpo fora, mas o coração ficou atrasado.
Dei um passo maior do que a velha alma.
Empurrei minha cegueira atrofiada no precipício
para ver se despertava voo.
Quis atiçar a vida com vara curta,
ela acordou e eu ainda tenho medo.
Meus pés são rápidos para descalçar os sapatos,
mas meus pensamentos demoram a perceber
a se deixarem esparramar na alegria da nudez.
Vestida de felicidade ainda choro.

 

 

***

 

 

Um piscar de asas

 

O mundo acaba:
Entre o perigo
E o abrigo
Entre as roupas sujas
E as bem lavadas
Entre os enlaces
E as mãos atadas
Entre as tempestades
E os copos d’água
Nos resta apenas
Um piscar de asas

 

Paulista de Jaboticabal, Clara Baccarin é a moça interiorana e letrada que viajou o mundo e nasceu com a inquietude da poesia nas veias. Escritora assídua nas redes sociais, é colunista de diversos blogs sobre literatura, arte e estilo de vida, escreve crônicas que seguem um estilo livre, despojado e poético. Formada em Letras (Unesp) e mestre em Estudos Literários (Unesp), publicou dois livros, o romance ‘Castelos Tropicais’ (Chiado ed., 2015) e a antologia de poemas ‘Instruções para Lavar a Alma’ (Sempiterno ed., 2016).

 

Clique para imprimir.

2 Comentários

  1. Linda esta foto da canoa. A poesia, nem se fala… :)

  2. Uma alma Universal e muito talentosa e sobretudo sensível com muita delicadeza pra tratar do ser

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *