Janela Poética V

Marília Floôr Kosby

 

rety

Desenho: Rety Ragazzo

 

a terra prometida

 

salvem a pátria dessas estrelas
pois minha terra natal acabou de ruir
sem cortejo ou cerimônia
meus mortos me trouxeram
os panos sujos de limpar memórias

vieram até minha casa
não comeram
nem sorriram
verde
como sorriem as serpentes
de tristeza

os mortos rastejaram até a janela
viram que o céu não cabia mais no mundo
e cantaram seu choro cósmico de notas repetidas

esquecer é da vida
o único milagre

 

 

 
***

 

 

 

beduína

 

a cidade leu a minha mão
e descobriu que ela não tinha linhas
que o meu destino era traçado
a pinceladas curtas

impressionando ou não
o que for feito de mim
só se saberá já pronto
só terá sentido pra quem olhar de longe

 

 

 
***

 

 

 
inconveniências

 

coração em pedra
ferida é

me preocupo com
esse órgão vital
no corpo fóssil

 

 

 

***

 

 

 
demônios

 

as sombras tropicais
sobrevivem à hora mais triste do dia
mas só as sombras tropicais

de resto
todo mundo morre um pedaço
entre uma e duas da tarde

à parte a vantajosa desmatéria
há um esconderijo secreto
debaixo dos pés do mundo
onde cada sombra
guarda seu rosto
e o extinto gozo
de poder ser contraditória

 

 

 

***

 

 

 
o beco

 

incólume cometa,
desembainha a tua fábula
e o negro porto do teu hálito
explodirá vestígios
do metro em que nossos passos foram mímica

 

 

 
***

 

 

 
prenda

 

meridional
por força das entranhas de minha mãe,
nasci de onde falo

mediterrânea,
por vazão da honra
que coube aos meus homens,
a mim e as minhas prestou-se apenas a desonra

tocamos no pó de um segredo
o calafrio de um sul febril
o sul das sangrias desatadas
de índios que viraram vento
velando e varrendo esse chão raso

chão que devorou negrinho
solo que carcomeu negrões.

                              

Marília Floôr Kosby nasceu em Arroio Grande, extremo, extremíssimo, extremoso sul do Brasil, em 1984. Poeta, compositora, antropóloga. Entre os anos de 2008 e 2012, alimentou os blogs de poesia Salamancas Supersônicas e A Sanga das Patavinas. É autora dos livros de poemas Os baobás do fim do mundo (2011; 2015) e Siete colores e Um pote cheio de acasos (2012). Os poemas selecionados para esta edição de Diversos Afins compõem o livro “Os arroios não voltam”, obra ainda inédita.

 

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1 comentário

  1. “do metro em que nossos passos foram mímica”, muito bom! o geral, gostei!

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