Jogo de Cena

A ETERNA ARTE DO EFÊMERO – 2ª PARTE

Por Fernando Marques

  

 

Teatro ocidental, de Roma ao século XX

 

Os latinos, de índole mais pragmática e menos reflexiva que a dos gregos, prefeririam gladiadores, feras e outras atrações brutais, pelo menos no que diz respeito às grandes plateias. O circo ululante foi cultivado em detrimento da arte dos poetas trágicos – os austeros textos de Sêneca seriam valorizados apenas muitos séculos mais tarde, às portas da Renascença. Não foi esse o caso, porém, das comédias brilhantes de Plauto (254-184 a.C.), muito amigo das confusões farsescas, autor de textos posteriormente imitados – O avarento, que Molière escreveu em 1668, e O santo e a porca, de Ariano Suassuna, de 1957, são exemplos de peças inspiradas em Plauto. Seu rival Terêncio acentuou os aspectos retóricos do diálogo, em prosa elegante que mais tarde, já no século XV, serviria de modelo para a prática erudita do latim.

Os cristãos, que de início foram almoço de animais na arena romana, alcançaram uma vitória política com a chegada ao poder de Constantino em 330. Fechado o mundo grego, que os romanos reviveram apenas superficialmente, as festas cristãs na Idade Média constituirão o alimento dos espetáculos: Natal e Páscoa fornecem temas ao teatro medieval, com a representação nas igrejas tendo o altar como cenário. (Existirá, em paralelo, um teatro popular mais espontâneo e menos submisso aos cânones religiosos.) As formas teatrais na Idade Média estão distantes da concentração clássica e desconhecem a lei famosa das três unidades – ação, lugar e tempo. Pelo contrário, são formas múltiplas e dispersas: não dramáticas, mas épicas.

Pretendia-se exibir a história bíblica, e o enredo de um mesmo espetáculo poderia saltar séculos ou milênios, de Adão a Cristo, por exemplo. O espaço físico utilizado não se restringiu ao interior dos templos; Berthold informa que “o mais antigo dos dramas religiosos existentes em língua francesa, o Mystère d’Adam, da metade do século XII, já se realizava fora do portal da Catedral. Em três grandes ciclos temáticos, ele trata do pecado e da redenção prometida à humanidade: a Queda, o assassinato de Abel por Caim e os Profetas”. A autora acrescenta: “As rubricas sugerem o uso de uma armação de madeira adequadamente decorada, que se apoiava na fachada da igreja. O pórtico era a Porta do Céu. De um lado ficava o Paraíso, sobre um tablado elevado; do outro, mais abaixo, a Boca do Inferno”. O legado medieval abrange ainda a comédia, de que o modelo é a farsa Mestre Pierre Pathelin, que satiriza os costumes ao apresentar um advogado tão respeitado quanto inescrupuloso. A primeira representação do texto francês, de autor desconhecido, data de 1465.

 

A farsa “Mestre Pierre Pathelin” / Direção: João Guedes / Foto: Divulgação

 

Com a queda de Bizâncio, facção oriental do Império Romano, em 1453, as elites ocidentais iriam redescobrir os gregos, Aristóteles e a Poética, cujo texto original foi republicado em 1508. Os debates em torno das noções aristotélicas, entre elas os conceitos de unidade e de catarse, fizeram correr muita tinta, em especial na Itália e na França. Defendia-se a volta aos velhos gregos, mas nem sempre se chegou a um acordo sobre o que teria sido, de fato, o teatro clássico. A princípio tarefa de estudiosos, o Renascimento no palco se inicia em 1486, com a encenação em cidades italianas da tragédia Hipólito, de Sêneca, e da comédia Os gêmeos, de Plauto. “O que nunca havia ocorrido em vida a Sêneca veio a se concretizar 1500 anos depois, em alto nível acadêmico”, observa Berthold.

A descoberta da perspectiva e o respeito ao legado grego logo iriam influir sobre os cenários e sobre a arquitetura teatral. Leonardo da Vinci foi pioneiro na arte de desenhar para a cena, tendo criado palco giratório já em 1490. O Teatro Olímpico de Vicenza, inaugurado naquela cidade em 1584, com seu palco semicircular e seus cenários em perspectiva (que somavam a perspectiva real à ilusão da pintura), é um dos modelos arquitetônicos da época. O maquinário sofistica-se, e Berthold ressalva: “No decorrer de um século, o teatro renascentista viveu uma repetição em câmera rápida do teatro romano. Quanto mais suntuoso o palco se tornava e quanto mais atenção era dispensada a seus aspectos visuais, mais desvalorizado ficava o conteúdo literário”. Os atores deviam agora “subordinar seu movimento e composição ao cálculo ótico” da cena.

Na Inglaterra, as comédias e tragédias de Shakespeare, diversamente, dispensaram em parte a tecnologia visual e concitaram a plateia a imaginar salas e paisagens: o teatro se apresentava como uma espécie de sonho desperto. O dramaturgo dirá, em Henrique V: “Imaginai que no cinturão destas muralhas estejam encerradas duas poderosas monarquias (…). Porque é vossa imaginação que deve vestir os reis, transportá-los de um lugar para outro, transpor os tempos”. Inúteis as citadas unidades de ação, tempo e lugar, quando se consegue “acumular numa hora de ampulheta os acontecimentos de muitos anos”. Texto e ator conduzem a fantasia dos espectadores, o que se verifica também no teatro de Calderón de la Barca, em peças como A vida é sonho. No texto de Calderón, a musicalidade do verso parece predispor o público a aceitar, como se fossem naturais, as extravagâncias do enredo tragicômico: um príncipe despótico e cruel imagina ser um prisioneiro miserável, sofrendo experiências que afinal o transformam em soberano mais justo e equilibrado.

 

Cena da montagem “A vida é sonho” / Direção: Julio Maciel / Foto: Guto Muniz

 

O também espanhol Lope de Vega, aborrecido com as cobranças acadêmicas, costumava dizer que, ao redigir uma peça, trancava as regras na gaveta. Já na França do século XVII, sob o patrocínio da corte, dramaturgos e críticos procederam de forma bem distinta, muito mais apegada às normas que a Academia Francesa, comandada por Richelieu, estabelecia. Corneille desafiou hábitos estéticos e morais com O Cid, em 1636, peça de enorme sucesso que, talvez por isso mesmo, foi desancada pelos conservadores. O autor teria insultado a moralidade e a verossimilhança, desencadeando polêmica. A exigência de verossimilhança chegaria ao extremo, no século XVIII, com Gottsched, representante alemão da serenidade clássica francesa, capaz de exageros como o de afirmar que, se a ação saltasse no tempo ou no espaço (obrigando o espetáculo à mudança de cenário), o espectador deixaria de acreditar no que vê, desligando-se do que se mostra no palco. Poderoso gerente da cena alemã, Gottsched toma a ideia de ilusão cênica demasiadamente ao pé da letra; o incisivo Lessing, renovador que se contrapôs à obediência obtusa às normas, chamou Gottsched de “besta quadrada”.

Lessing, ligado ao iluminista francês Diderot, de quem traduziu as peças, terá de lutar contra o conservador Gottsched. A Alemanha é, naquele período, colônia cultural dos franceses, para dizê-lo com alguma ênfase. A renovação do teatro implicava levar à cena não mais as aristocráticas personagens de Racine, mas figuras representativas do mundo burguês emergente (as criaturas racinianas seriam definidas por Schiller como “espectadores glaciais de sua própria fúria, professores de sua paixão”). Àquela altura, a popular commedia dell’arte, originária da Itália, já estabelecera seus tipos havia 200 anos, espalhando-os pela Europa.

Na década de 1770, surge na Alemanha a geração Sturm und Drang, Tempestade e Ímpeto, de que fazem parte o jovem Schiller de Os salteadores, Goethe e o inquieto Lenz. A lógica iluminista já não basta para esses escritores, chamados pré-românticos, que deixam obra incompleta (salvo Schiller e Goethe, convertidos depois ao credo neoclássico), mas plena de sugestões. Essas sugestões viriam a influir, décadas depois, sobre Georg Büchner, que morreu aos 23 anos legando três peças, entre elas as seminais A morte de Danton e Woyzeck. A mistura de comédia e drama, as situações apresentadas aos saltos e não de modo linear reincidem no Woyzeck, história do soldado raso maltratado pelo Estado, usado pela ciência e traído pela namorada, perdedor da cabeça aos sapatos – tipo de herói pouco frequente na dramaturgia do tempo. Os expressionistas viriam a perceber, em Büchner, um precursor.

 

Cena de “A Morte de Danton” / Direção: Jorge Silva Melo / Foto: Jorge Gonçalves

 

Quando Büchner morre, desconhecido, em 1837, a explosão romântica em torno de Victor Hugo já acontecera havia uma década. As formas operísticas, que vinham sendo elaboradas desde 1600, a princípio na tentativa de retorno ao teatro total dos gregos – poético, plástico, musical –, encontram, na segunda metade do século XIX, momentos agudos em Bizet, Verdi e Wagner. Outro modelo de teatro musical seria praticado pelo inglês John Gay já em 1728, na Ópera do mendigo, mesmo ano em que o gênero da revista, com a crítica dos fatos imediatos, nasce nas feiras parisienses. Síntese das fórmulas erudita e popular de espetáculo musical pode ser encontrada em Offenbach ou, mais recentemente, em Brecht e na Broadway.

No teatro dramático, a passagem do romantismo ao realismo se dá por meio de peça que tempera franqueza realista, passionalidade romântica e moralismo burguês, exibindo a história da prostituta Marguerite Gautier. Hoje anacrônica, A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho, soube discutir a questão do amor que se contrapõe às conveniências sociais, por volta de 1850.

A dramaturgia de Ibsen, mais franca e madura que a de Dumas Filho, escandaliza as plateias com Casa de bonecas, 30 anos depois. O teatro acompanha as mudanças políticas, que incluem reivindicações feministas. Textos de Ibsen integram o repertório do Teatro Livre, de André Antoine, que busca levar ao palco o naturalismo preconizado por Émile Zola desde 1867 (ano em que Zola publica o romance Thérèse Raquin, depois transformado em peça teatral). Tendências estéticas contraditórias – basicamente, naturalismo e simbolismo – entram em debate. Os artistas reunidos no Teatro de Arte de Moscou, criado por Stanislavski em 1898, reelaboram noções e práticas realistas, influenciados pela companhia alemã dos Meininger. “Stanislavski, em Moscou, e Antoine, em Paris, admitiram sua dívida para com eles, em matérias tais como: a sugestão cênica de uma quarta parede, a atuação em conjunto e a ideia de que a direção cênica cria um estilo”, diz Berthold. Nascia o encenador, no sentido moderno.

 

Montagem de “Casa de Bonecas” / Direção: Stepháne Braunschweig / Foto: Divulgação

 

O livro mostra, com apoio nas muitas ilustrações, a progressiva tendência à geometria na primeira metade do século XX, com a economia de linhas alcançada por cenógrafos como o suíço Appia e o inglês Craig. Exemplo da soma de talentos na fatura de um teatro novo encontra-se no balé O chapéu de três pontas, de 1919, com música de Manuel de Falla e cenário cubista de Picasso: a paisagem desenhada tem traços irregulares e angulosos, a perspectiva acha-se subvertida.

Nas primeiras décadas do século passado, a quarta parede é derrubada com propósitos políticos pela vanguarda panfletária de Piscator, que irá se desdobrar nas propostas de Brecht – autor filiado, na origem, ao expressionismo niilista e soturno. Em 1947, o comunista Bertolt Brecht depunha diante da Comissão sobre Atividades Antiamericanas da Câmara, o comitê que perseguiu as oposições nos EUA. No ano seguinte, Antonin Artaud, teórico do retorno à cena ritual, morria na França depois de repetidas e dolorosas internações.

Correntes contraditórias (mas nem sempre inconciliáveis) têm movimentado o teatro no Ocidente. Uma delas pretende devolver nobreza dionisíaca à vulgaridade contemporânea e se encarna emblematicamente em Artaud; outra quer fazer do palco instrumento de mudança social, caso de Brecht. Uma terceira tendência se acha nos dramaturgos do Absurdo, Beckett e Ionesco à frente, que sintetizam protesto político e aventura estética: a linguagem se fragmenta, tornando-se escassa e metafórica, as situações são tacitamente trágicas, incontornáveis, as personagens não têm saída; o mundo parecia insolúvel aos dramaturgos do pós-guerra. Um quarto caminho, ainda, se pratica no teatro comercial, incluído o espetáculo cantado à maneira da Broadway, em geral desligado de transformações interiores ou coletivas. Teatro que exibe, no entanto, achados incisivos, como em West Side story, de 1957, com música de Leonard Bernstein. A herança europeia se retempera na mistura americana.

Margot Berthold privilegiou critérios estéticos na composição do livro; mas não há escolhas inocentes. Suas opções são eruditas, canônicas: trata-se da história do teatro segundo o ponto de vista de uma grande estudiosa de perfil acadêmico, felizmente capaz de escrever com elegância e sem pedantismo (mérito que em parte caberá aos tradutores). Seu pendor por critérios tradicionais a levou a desconsiderar muito do que não estivesse consignado nos museus e nas bibliotecas, sobretudo europeias. Assim, é algo omissa no que diz respeito a teatro popular, embora dedique bom espaço a commedia dell’arte e congêneres, e absolutamente muda em relação a América Latina e África. Tais faltas poderiam ser minoradas com a publicação de texto suplementar numa possível segunda edição brasileira [a História já teve novas edições]. Ressalvadas as lacunas, o belo e caudaloso livro importa pelo que é. Terá vida longa em qualquer idioma.

 

 (Fernando Marques é professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB, jornalista, escritor e compositor. Publicou “Retratos de mulher” (poesia; Varanda, 2001), “Contos canhotos” (LGE, 2010), “A comicidade da desilusão: o humor nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues” (ensaio; Editora UnB/Ler Editora, 2012) e as peças “Zé” (adaptação do Woyzeck de Büchner) e “Últimos” – comédia musical (livro-CD), ambas pela Perspectiva. A cantora Wilzy Carioca lança neste ano o CD “De cor”, com 14 canções do autor. A peça “Zé” será republicada em novembro pela É Realizações)

 

 

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1 comentário

  1. A leitura desta otima resenha traz ao leitor nao especialista uma informaçao apreciavel sobre a historia do teatro, resumida com elegância e clareza. A apreciaçao sobre o livro resenhado, com o ponto de vista do comentarista, também contribui para esclarecer eventuais escolhas do leitor. Parabéns.

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