Jogo de Cena

A FORÇA INESGOTÁVEL DO TEATRO DE ARIANO SUASSUNA

Por Geraldo Lima

 

Ariano Suassuna / Foto: Demis Roussos

 

Ariano Suassuna, nascido na Paraíba em 1927, completou, no dia 16 de junho, 87 anos de idade.  Boa parte desses anos tem sido dedicada ao teatro, à literatura e à defesa da cultura brasileira contra a massificação. Em 1947, então com 20 anos de idade, escreveu a tragédia Uma mulher vestida de sol, com a qual conquistou o primeiro lugar no concurso de âmbito nacional promovido pelo Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). À época, Hermilo Borba Filho, um dos fundadores do TEP, escreveu: “Tenho a impressão de que o Nordeste encontrou em Ariano Suassuna o seu poeta dramático mais capacitado para transformar em termos de teatro os seus conflitos e suas tragédias”. E não estava enganado. Porém, a comédia, mais do que a tragédia, é que lhe permitiria expor com sagacidade e irreverência a alma do povo nordestino, sempre às voltas com as complicações do meio ambiente e as desigualdades sociais.

O teatro de Ariano Suassuna impressiona pela capacidade que o autor apresenta de mesclar o erudito e o popular, seguindo, de forma coerente, as linhas mestras do Movimento Armorial, cujo objetivo era “criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro” (Wikipédia).  Além disso, podemos perceber no seu texto dramatúrgico a rica herança da cultura ibérica e do cristianismo, mais precisamente aquele ligado à Igreja Católica. Suas raízes estão fincadas na tradição cuja fonte encontra-se lá nos autos da Idade Média, no humanismo do teatro de Gil Vicente e, no século XVII, no teatro barroco de Calderón de La Barca. Tanto nos textos do autor português quanto nos do autor espanhol, o elemento popular e o religioso têm uma presença muito forte.

Numa entrevista à Folha de São Paulo, em 1991, Suassuna diz o seguinte a respeito das suas influências literárias: “Recebi uma influência enorme de Cervantes e de vários autores espanhóis, inclusive de Calderón de La Barca. Talvez até maior que a de Cervantes foi a de Calderón”.  Esses autores são, na verdade, sua matriz estética, e com eles o autor de O santo e a porca mantém um diálogo constante. É, no entanto, na cultura popular nordestina que Ariano Suassuna sedimenta as bases da sua dramaturgia. Dos folhetos de cordel nascem algumas das suas peças, como é o caso do Auto da Compadecida, que se originou, segundo o autor, “da fusão de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro (ambos de Leandro Gomes) e O castigo da soberba (de Anselmo Vieira)”. Ocorre, nesse caso, não a cópia, mas sim a recriação de textos da literatura popular nordestina, dando origem a um texto teatral em que o popular e o erudito fundem-se de modo brilhante.

A visada crítica sobre a realidade brasileira, mais especificamente a realidade nordestina, com seus costumes arraigados, frutos de uma sociedade oligárquica e de uma cultura popular marcada pela religiosidade profunda, também colabora para tornar o texto do mestre Ariano mais contundente. Caracterizados, essencialmente, pelo humor corrosivo e farsesco, seus textos, através dessa crítica aos costumes e aos desvios de conduta de indivíduos que ocupam uma posição hierárquica significativa na sociedade, conseguem reverberar para além do riso momentâneo. Embora tratem de questões locais, próximas ao ambiente em que o autor vive, a temática abordada neles é de caráter universal: a avareza, a vaidade, a oposição vida/morte, a opressão, a corrupção, a esperteza como meio de se livrar da opressão do mais forte etc. Faz valer, desse modo, o que disse Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

No universo dramatúrgico de Ariano Suassuna, a oposição entre Bem e Mal dá-se no embate entre o sertanejo nordestino desprovido de riqueza material, mas senhor de uma esperteza impressionante, beirando, às vezes, o picaresco (podemos citar como exemplos João Grilo e Caroba), e o rico que o explora ou o oprime. Nesse embate, leva sempre a melhor o tipo fraco, desprovido de riqueza material, mas esperto e que conta, geralmente, com uma ajuda do além – uma espécie de deus ex machina. Pode-se dizer que essa esperteza é, de certa forma, o único recurso que o pobre possui para sobreviver num mundo comandado por poderosos despidos de humanidade. Isso demonstra a opção ideológica clara do autor a favor dos menos favorecidos.

Na Farsa da boa preguiça, por exemplo, o preguiçoso poeta Joaquim Simão conta com a ajuda de um santo (Simão Pedro) para se contrapor ao poderio econômico de Aderaldo Catacão e à tentativa de Fedegoso e Quebrapedra (dois diabos) de levá-lo para o inferno.  Num primeiro momento, inclusive, o capitalista Aderaldo Catacão conta com a simpatia de um anjo (Miguel Arcanjo), mas vai perdê-la ao final quando este constata a extrema avareza do seu protegido: “Ah, é assim? Pois esse peste/vai perder quem ainda lutava por ele!”.  Junto também com os dois enviados dos céus encontra-se Jesus Cristo (Manuel Carpinteiro), que a tudo observa e avalia.  Essa relação direta dos seres celestiais com os seres terrenos, empenhando-se, no caso, para influenciar no seu destino, aproxima-se claramente do universo da mitologia grega, onde os deuses participavam diretamente do destino (Moira) dos mortais.  Na Ilíada e na Odisseia temos os deuses (Zeus, Hera, Afrodite, Poseidon etc) confrontando-se para proteger ou castigar heróis gregos ou troianos. Já nos textos de Ariano (e dos autos medievais), marcados pela presença da mitologia cristã, anjos e santos enfrentam demônios para evitar que os personagens sejam punidos com o fogo do inferno.

Temos essa presença de seres celestiais e de seres demoníacos intervindo também no destino dum grupo de mortais no Auto da Compadecida, de 1955. Nesse texto, porém, a ação se dá já no mundo dos mortos. João Grilo e outros personagens estão mortos e precisam da ajuda de Nossa Senhora (A Compadecida) e de Jesus Cristo (Manuel) para que não sejam encaminhados ao inferno. Aqui, temos a aproximação com o Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, escrita em 1517. Diferentemente da peça de Gil Vicente, em que a maioria dos mortos não escapa ao fogo do inferno, na peça de Ariano, com a argumentação precisa de Nossa Senhora e de Jesus Cristo, livram-se todos do castigo. É um final típico da comédia, como nos diz Renata Pallottini no seu livro Dramaturgia: a construção da personagem: “Seu desenlace é, via de regra, feliz, otimista. O público sente-se solidário com o desenrolar da trama, se descontrai com o desenlace, que lhe dá uma espécie de catarse que não é catarse porque não implica piedade e terror, mas uma empatia cuidadosa, onde o riso é às vezes de cumplicidade, outras vezes de superioridade”.

Ariano Suassuna / Foto: Demis Roussos

Na Farsa da boa preguiça, escrita em 1960, a intervenção celestial, para evitar a vitória do diabo e do rico Aderaldo Catacão, dá-se no mundo dos vivos. Então, faz-se necessária a descida desses seres celestiais ao mundo dos mortais. Nesse caso, os seres celestiais precisam assumir a condição de um mortal e andar entre os homens como um deles. Nessa condição de mortal, pode ocorrer algum desvio ou conduta que fuja do que se espera de um anjo ou de um santo. É o que ocorre com Simão Pedro: ele encontra um queijo que pertenceria a Aderaldo Catacão e decide ficar com ele. Ao final, temos os três seres celestiais (Manuel Carpinteiro, ou seja, Jesus Cristo, Simão Pedro e Miguel Arcanjo) disputando a posse do queijo num jogo. A proposta é feita desta maneira por Manuel Carpinteiro: “Então vamos fazer o seguinte:/enquanto a história do Rico e do Poeta continua,/a gente vai ali dormir um sono e sonhar!/Quem tiver o sonho mais bonito/fica com o queijo todo, está bem?”.  Depois, quando vão revelar os sonhos, Simão Pedro confessa: “Então, sonâmbulo, como sempre fui,/acho que me levantei,/porque quando acordei,/tinha comido o queijo:/só estas cascas encontrei!”. E essa sua esperteza é ainda exaltada por Manuel Carpinteiro: “quando escolhi este para Príncipe dos Apóstolos/e chefe da Igreja,/foi porque sabia que o cabra era esperto!”. Aqui, poderíamos dizer que o texto de Ariano se aproxima da Sátira Menipeia, pois ocorre o rebaixamento de um ser celestial, fazendo-o comportar-se como um simples mortal afeito aos desvios de conduta.

Para Aristóteles, a comédia, em contraposição à tragédia, “é a imitação de homens de qualidade inferior”. O universo teatral criado por Ariano Suassuna, a partir de suas fontes populares e eruditas, é marcado por tipos que se encaixam nessa definição do filósofo grego. Seu olhar generoso, no entanto, faz com que seus personagens pertencentes à camada menos favorecida da sociedade ganhem a simpatia do público por investir-se de esperteza, graça e malícia – elementos capazes de fazê-los sobrepor-se ao outro, que se impõe, geralmente, pela força física ou pelo poder econômico. É o caso das personagens Caroba e Pinhão na peça O santo e a porca, de 1957. O público pode até se opor ao modo interesseiro com que ambos agem inicialmente, mas não tem como não simpatizar com eles ao descobrir que são explorados vergonhosamente pelos patrões. É o que nos revela a fala de Pinhão no Terceiro Ato: “Mas onde está o salário de todos estes anos em que trabalhamos, eu, meu pai, meu avô, todos na terra de sua família, Seu Eudoro? Onde está o salário da família de Caroba, na mesma terra, Seu Eudoro? (…) Onde está o salário de Caroba durante o tempo em que trabalhou aqui, Seu Euricão?”.

Caroba e Pinhão, assim como João Grilo, possuem linguagem e esperteza que lhes permite negociar, argumentar e tramar em proveito próprio ou dos outros. E se podem fazer isso com tanta desenvoltura, em relação à linguagem, é porque, nas peças de Suassuna, não há distinção entre o nível de linguagem usado pelos patrões e o usado pelos empregados. Ou seja, a correção gramatical é um elemento presente tanto na fala dos menos favorecidos quanto na das elites econômicas.  Menos que incorrer em inverossimilhança, o que Ariano faz é armar os representantes das camadas mais pobres da sociedade com o mesmo poder de comunicação dos que detêm o poder. Dá-lhes a mesma “competência lingüística” dos seus opressores.  Isso permite, então, que o embate verbal não penda só para um lado, ou seja, dos representantes das forças econômicas. Seus personagens, nesse caso, não sofrem da mesma angústia de um Fabiano, no romance Vidas Secas, do também nordestino Graciliano Ramos.  Por ser limitado em relação à linguagem, o personagem de Graciliano não pode exprimir-se da maneira que gostaria e que precisaria para se livrar da exploração e da opressão.

Por conta de toda essa riqueza estética e convicção ideológica, o teatro criado por Ariano Suassuna nos encanta, conscientiza, diverte e humaniza. Daí sua força inesgotável como obra de arte capaz de nos manter atentos às complexidades da alma humana e às riquezas culturais do nosso país.

 

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. Tem algumas obras publicadas, dentre elas: Baque (contos), UM (romance) e Trinta gatos e um cão envenenado (peça de teatro). Mantém o blogue Baque.

 

 

 

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2 Comentários

  1. Obrigada pelos belos esclarecimentos que desvelam os horizontes universais das recriaçoes enraizadas de Suassuna. Quanto aos recursos comuns com as obras de Homero,lembro apenas que antes de terem registro escrito, estas foram disseminadas pela memoria oral de um povo em cuja cultura elas se inspiravam e à qual davam a mais ampla e adequada sonoridade.
    A linguagem comum aos personagens oficialmente “cultos” por serem alfabetizados e aos considerados “incultos” por terem sido excluidos da educaçao oficial é um formidavel achado de Ariano Suassuna, que lhe permite evitar o que Antonio Candido ja classificara como “centauro estilistico”. Isto para ele designava
    « a injustificavel dualidade na notaçao do discurso, que so pode ser explicada por razoes ideologicas. Se nao, por que adotar uma notaçao fonética rigorosa para o falar rustico e aceitar para a do narrador culto o critério aproximativo normal?” (« A literatura e a formação do homem”, Remate de males – Revista do Departamento de Teoria Literária – Antonio Candido – n° especial – 1999, Campinas, UNICAMP – Instituto de Estudos da Linguagem)

  2. Fabricio, não resisti e publiquei a carta de Matheus Nachtergaele que Ana Rita me mandou. Espero que seja dele mesmo. Se não for, não tem problema: valeu a homenagem de João Grilo.

    “Carta para Ariano,

    Quem te escreve agora é o Cavalo do teu Grilo. Um dos cavalos do teu Grilo. Aquele que te sente todos os dias, nas ruas, nos bares, nas casas. Toda vez que alguém, homem, mulher, criança ou velho, me acena sorrindo e nos olhos contentes me salva da morte ao me ver Grilo.

    Esse que te escreve já foi cavalgado por loucos caubóis: por Jó, cavaleiro sábio que insistia na pergunta primordial. Por Trepliev, infantil édipo de talento transbordante e melancólicas desculpas. Fui domado por cavaleiros de Sheakespeare, de Nelson, de Tchekov. Fui duas vezes cavalgado por Dias Gomes. Adentrei perigosas veredas guiado por Carrière, por Büchner e Yeats. Mas de todos eles, meu favorito foi teu Grilo.

    O Grilo colocou em mim rédeas de sisal, sem forçar com ferros minha boca cansada. Sentou-se sem cela e estribo, à pelo e sem chicote, no lombo dolorido de mim e nele descansou. Não corria em cavalgada. Buscava sem fim uma paragem de bom pasto, uma várzea verde entre a secura dos nossos caminhos. Me fazia sorrir tanto que eu, cavalo, não notava a aridez da caminhada. Eu era feliz e magro e desdentado e inteligente. Eu deixava o cavaleiro guiar a marcha e mal percebia a beleza da dor dele. O tamanho da dor dele. O amor que já sentia por ele, e por você, Ariano.

    Depois do Grilo de você, e que é você, virei cavalo mimado, que não aceita ser domado, que encontra saídas pelas cêrcas de arame farpado, e encontra sempre uma sombra, um riachinho, um capim bom. Você Ariano, e teu João Grilo, me levaram para onde há verde gramagem eterna. Fui com vocês para a morada dos corações de toda gente daqui desse país bonito e duro.

    Depois do Grilo de você, que é você também, que sou eu, fui morar lá no rancho dos arquétipos, onde tem néctar de mel, água fresca e uma sombra brasileira, com rede de chita e tudo. De lá, vê-se a pedra do reino, uns cariris secos e coloridos, uns reis e uns santos. De lá, vejo você na cadeira de balanço de palhinha, contando, todo elegante, uma mesma linda estória pra nós. Um beijo, meu melhor cavaleiro.

    Teu,
    Matheus Nachtergaele

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