Jogo de Cena

ANTÔNIA E SUA HUMANÍSSIMA TRINDADE

Por Yara Camillo

 

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Donantônia, personagem do mais recente trabalho do Núcleo Ás de Paus, é uma senhora que adora receber visitas para um café, uma Prosa ponteada de um humor que volta e meia traz a Poesia na manga.

Quatro Menestréis abrem o espetáculo, estendendo a ponte entre Donantônia e a plateia – essa entidade que se forma e se recria diante de todos os palcos do mundo –; quatro entes que anunciam, narram, comentam, adivinham, concluem o que se passou, o que se passa ou vai se passar com Donantônia. Quatro energias que luzem, trafegam, estrelas e guias de roupagens várias, ora anjos, ora diabretes, erês, deuses-meninos que sopram aos viventes um sem-fim de sentidos e caminhos.

Donantônia vive só, na companhia das memórias que gosta de despertar, de trazer ao agora, compartilhando-as com as visitas entre um café e um pedaço de bolo. Memórias que ganham vida, ocupam espaços, reacontecem; e por aí vai se desenhando uma eternidade insuspeitada na aparente finitude das coisas.

Entre as memórias, impossível não evocar o amor primeiro: Argeu, argonauta que viaja pelo afeto de Antônia afora, pelo afeto de Antônia adentro e ali faz morada, e numa noite já perdida no tempo propõe o irresistível: a fuga. Antônia em doce apuro se vê: se por um lado diz “sim” e parte, deixando pais e família para trás, por outro se nega, apesar do amor se nega, deixando Argeu sozinho na estação; e dessa noite em diante não se passa um dia sequer sem que ela pense em como seriam as coisas, se tivesse dito “sim” a Argeu. Mas o caminho de Antônia não se bifurca apenas, não é dual. Entre um “sim” e um “não” há outras tantas possibilidades, uma gama quase sem fim de caminhos, de “talvez”… E assim se manifesta uma terceira via de Antônia, aquela que não vai nem fica, que de uma hora para outra vê-se sozinha no mundo, sem paz, sem pais, sem Argeu, sem ninguém, sem nada, sem mais. Assim abrem-se em leque suas cartas-memórias.

Uma lembrança chama outra, um caminho leva a outro, o amor por Argeu remete a histórias tantas da vida de Antônia que se compõe, recompõe, se reinventa, dando ou prestando conta de suas escolhas, sua natureza tripartida, sua Humaníssima Trindade.

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Antônias e os Menestréis / Foto: Edmilson Luiz Perrota

Enquanto isso, Antônia vai encontrando seu lugar no coração da plateia, que vai se encantando com suas graças e manias e venturas e aflições, “Antônia que nem é pouco, nem é muito, mas também não é nada, só Antônia, velha, sozinha, aposentada, vivendo só nesta casa…” Uma senhora, um arquétipo como tantos, Antônia vai se tornando única, assim como todo ser que nos rouba de nós mesmos, por um instante que seja, e nos acolhe e chama para o tempo de um olhar, de alguma atenção, algum afeto. As múltiplas, aparentemente desconexas escolhas de Antônia, que tornam seu pensamento “abilolado”, como a própria Antônia diz, a alentam, acalentam, questionam, tornam feliz e infeliz; e lá vai Antônia de novo se abrindo, dividindo, tripartindo entre um “sim”, um “não”, um “talvez”. E é esta última Antônia quem se rebela e diz: “Se eu pudesse viver duas vidas, se eu pudesse ir e não ir! Nunca vi maldade maior do que dizer que dois proveitos não cabem num peito… Por que não? Por que não pode caber neste peito tudo o que há de mais bonito na Vida? Um, dois, todos os proveitos aqui, aqui dentro, por que não? Tenho tanta gana, tanta garra, tantos dedos, e minha sede de viver me dará quem sabe firmeza para reter, entre eles, umas tantas promessas de felicidade.”

Por aí segue o espetáculo, com Antônia revivendo horas de sutil relevância, que passariam despercebidas a qualquer olhar menos atento; por aí vai Antônia revivendo fatos, hiatos, uma noite, uma fuga, uma presença, uma permanência, uma dúvida… E de novo se depara com seus caminhos fragmentados, suas partições ali incorporadas: as escolhas – ou lá o que sejam –, tão palpáveis que chegam a parecer, cada uma, um ser independente a desconstruir Antônia que já não se vê só, mas na companhia das Antônias que a habitam, que ganham corpo a ponto de assustá-la, de se tornarem tangíveis, visíveis mesmo, embora ela ainda tente recusar o incômodo presente: “Sabe o que vou fazer? Vou contar até três e quando abrir os olhos verei que sou uma e não três… Só eu, só uma, uma única Antônia. As coisas são do jeito que a gente vê e eu não estou vendo ninguém nesta casa, a não ser eu, eu, e eu…”

Sem ter para onde fugir – se assim quisesse, mas nem sabe se quer –, sem ter onde se aninhar, para ordenar as ideias e recobrar o fôlego perdido entre tantas cartas embaralhadas de si mesma, Antônia pede uma pausa, um café, um descanso para a alma. Um café para respirar e pôr em ordem os pensamentos. Sentam-se as Antônias à mesma mesa onde, por anos, cada uma delas esteve ou pensou estar sozinha, para um café, uma reflexão. Olham-se, repetem gestos e palavras que há tanto tempo são ditas em torno de uma mesa – ou de uma fogueira, de qualquer ponto onde seja possível a comunhão –, oferecem xícaras, pires, colheres, açúcar, perguntando-se: “Aceita? Aceito…. Aceita? Aceito. Aceita…?”

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O café das três Antônias / Foto: Leticia Nakadomari

E vão as Antônias se aceitando, se acertando, até se atrevendo a um dedo de prosa:

“Como será que a gente faz para dar um tangolomango nas lembranças, para que elas não venham nunca mais? Mas, pensando bem, melhor deixar que se acheguem e sentem e aceitem um pedaço de bolo e tomem café… Algumas doem, é verdade, principalmente as felizes. Mas que venham as lembranças, mesmo porque, pensando bem, não estou mais na idade de dizer adeus a ninguém. A ninguém.”

O depois é o depois que só o Teatro oferece. Antônia do Sim, Antônia do Não e Antônia do Talvez encontram-se, triangulam-se num ciclo, num círculo que não se fecha, ao contrário: abre-se em outros, numa pulsação contínua, numa roda que gira sem cessar… “Pois tudo o que agora acontece, tudo o que agora está sendo, ou é ou foi ou será.”

É um pouco assim que acontece Donantônia, terceira montagem do Núcleo Ás de Paus, de Londrina, Paraná.

Conheci esses artistas em 2010, por ocasião de seu trabalho de estreia, A Pereira da Tia Miséria, um texto adaptado para o palco por Luan Valero e sua rara sensibilidade, a partir de um conto de uma coletânea que traduzi, Contos Populares Espanhois (Landy Editora, 2005). Era uma criação coletiva e a Arte habitava, plena, aquele trabalho. Meu afeto pelos artistas do Núcleo veio em simultaneidade e sintonia com minha admiração pelo trabalho de cada um e do grupo, como um todo. A Pereira percorreu várias regiões do Brasil, oferecendo seus frutos, em cerca de 190 apresentações. Depois o Núcleo estendeu suas asas, suas águas, rumo a outros territórios e daí nasceu o espetáculo Singra, em 2013. Em 2016, após dois anos de pesquisas, nasce Donantônia, trabalho do qual participo, em parceria com o Núcleo, na construção da Dramaturgia.

Se Donantônia alimenta seus convidados, sua plateia, com café e outras delícias, alimenta também a alma de quem a conhece e acaba por levá-la um pouco para casa, para si, para algum recanto da memória talvez já enamorada dessa velha senhora.

Assim diz a canção de Thunay Tartari, enquanto a plateia se serve dessas doçuras: Permitamos que em nossos corações floresça / A maravilhosa gratidão pelo sustento / Manifestado pelo alimento presente / Em nossa mesa de comunhão.

Permitamo-nos, então, “um café, uma pausa, um pensamento, um descanso para a alma.” Um café sem cerimônia, na companhia de Donantônia.

***

 

 

Ficha Técnica:

 

Direção e produção: Núcleo Ás de Paus
Dramaturgia: Núcleo Ás de Paus e Yara Camillo
Direção musical: Thunay Tartari
Elenco: Adalberto Pereira, André Demarchi, Artur Junges, Camila Feoli, Rebeca Oliveira de Carvalho, Rogério Francisco Costa e Thunay Tartari
Iluminação: Rogério Francisco Costa e Altair de Souza (Borracha)
Cenografia: Rogério Francisco Costa
Marcenaria: Claudiomar Meneguetti
Serralheria: Carlos Miguel da Silva
Figurino: Núcleo Ás de Paus
Costura: Inês Zeidel Grassi
Perucas e máscaras: Daniele Stegmann
Design Gráfico: Arthur Duarte

 

“O Núcleo Ás de Paus surgiu em 2008, em Londrina, Paraná. Trata-se de um coletivo de artistas que se uniram por uma pesquisa teatral pautada no trabalho colaborativo. Em suas produções, instrumentos de equilibrismo, como pernas de pau, muletas e bastões, entre outros, formam os denominados “prolongamentos do ator”, síntese de um entendimento continuamente pesquisado por seus integrantes, em estudo diário.”

 

Yara Camillo nasceu em São Paulo, SP. Formada em Comunicações – Cinema – pela Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP. Trabalha com Literatura e Teatro. Na Literatura, como escritora e tradutora. No Teatro, como dramaturga, atriz e diretora. É autora de dois livros de contos, “Volições” (Massao Ohno Editor, 2007) e “Hiatos” (RG-Editores, 2004); participa de várias antologias e sites literários, coordena Oficinas de Teatro e Oficinas de Criação Literária. Contato: yaracamillo@gmail.com

 

 

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