Jogo de Cena

A sensorialidade da literatura de Ronaldo Correia de Brito na peça Redemunho

Por Vivian Pizzinga

 

Foto: Silvana Marques

Faca. Este é o nome do belíssimo livro de contos de Ronaldo Correia de Brito, lançado em 2003, e que deu origem ao espetáculo Redemunho, com direção de Anderson Aragón, que esteve em cartaz recentemente na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro. Quatro contos do livro são transpostos para a linguagem dos palcos, com uma dramaturgia carregada de lirismo e que aproveita muito do texto bem cerzido por seu autor.

Os contos escolhidos para compor Redemunho são A escolha, Cícera Candóia, Redemunho e Mentira de Amor, nessa ordem. Apesar de apenas o primeiro carregar explicitamente em seu título a temática da escolha, ela permeia os quatro contos encenados, evidenciando que a decisão que reside por trás de cada ato de escolher tem muito menos liberdade do que pode parecer a olhos menos atentos.

No primeiro conto, uma mulher deve escolher o homem ao lado do qual levará a vida, o que significa oscilar entre o martírio de sustentar até o final um relacionamento violento, mas legitimado pela sociedade e pela família, e o amor suave e acolhedor que, no entanto, não encontra legitimação alguma; mas a escolha é também entre a paixão irracional e a tranquilidade de um sentimento apaziguador. No segundo, uma filha deverá escolher entre ficar e ir embora, resignar-se a um destino moroso, engessado e amargurado, sem perspectivas, ou a culpa insuportável de deixar para trás a obrigação moral com a mãe e sua incapacidade de se cuidar sozinha. No terceiro conto, a escolha envolve segredos familiares e reside em continuar deixando-se enganar ou enfim desenterrar a verdade, no sentido literal do verbo aqui usado. Finalmente, no quarto conto, o mais delicado e poético de todos, o que temos é a escolha de uma mãe de família entre colocar-se em risco em busca da liberdade ou, novamente, resignar-se a um destino isolado e sem vida. Os laços de afeto que unem os personagens e suas (não-) escolhas de vida é o que dá o tom de cada um dos enredos, com suas esposas e maridos, mães e filhas, filhos e mães, abandonos e traições. Três atores em cena, Ana Carbatti, Claudia Ventura e Alexandre Dantas, dão vida a esses personagens curtidos pelo sol, pelo estio e pelo esquecimento do sertão do Ceará.

É preciso, antes de tudo, apontar os perigos da empreitada de Redemunho, que não se configura como adaptação. A transposição de linguagens não é tarefa fácil, e aí já se pode encontrar um elemento de complexidade do espetáculo, sobretudo em se tratando de um texto bem trabalhado como é o de Faca: o desafio exige um cuidado para que não se percam as características de cada um dos tipos de linguagem, sem, no entanto, desrespeitar o que se pode chamar, na falta de palavra melhor, de natureza de cada um deles. A literatura permite a imaginação livre e solta do leitor a partir da habilidade do escritor de tecer um texto imagético que guia o enredo e que cria personagens com o poder de cativar quem os acompanha. O teatro, por outro lado, oferece suporte imagético através da dramaturgia que constrói, ou seja: as cenas, os gestos e os personagens já estão lá e têm cara, cor e forma, mas essa oferta deixa, ainda assim, brechas para a mesma imaginação do espectador, que, a partir de recursos criativos e cênicos muitas vezes inesperados (e simples, no melhor sentido do termo), também deve ser capaz de imaginar objetos, personagens e acontecimentos que não estão lá.

Foto: Silvana Marques

Para citar alguns pequenos exemplos no espetáculo em questão, o ruído de grãos de areia levemente salpicados pelo chão do cenário remetem à chuva que cai insistente; uma cadeira trançada de palha faz as vezes de venezianas através das quais se pode espiar o mundo que teima em acontecer lá fora, separado do cárcere que só oferece sons para os prisioneiros em cativeiro; pedras dependuradas em um canto do cenário evocam a floresta, o quintal, a moita e o ambiente exterior em cada um dos contos dramatizados; um banco redondo assume a função de piano.

Fato é que Redemunho, espetáculo composto com um cuidado que salta aos olhos, ficando à altura do cuidado presente no texto literário de Ronaldo Correia de Brito, caminha, ainda assim, na fronteira tensa entre o que poderia ser uma peça atordoante, difícil de acompanhar, e o que pode ser uma peça primorosa, em termos de lirismo expresso em todos os elementos que compõem um espetáculo teatral. Sorte a do espectador, pois a bamba caminhada na fronteira perigosa não resvala para o atordoamento. Mas Redemunho não é uma peça fácil, exigindo uma oscilação entre a máxima atenção da plateia e o deixar-se levar por algo que se assemelha à atenção flutuante freudiana, meio através do qual o psicanalista não se prende a cada detalhe do conteúdo trazido por seu analisando, deixando-se, ao contrário, à deriva para captar aquilo que realmente importa, aquilo que merece ser pontuado e que fará diferença no processo (e, neste caso, na analogia aqui proposta, sem prejuízo da fruição estética que a peça permite). Digo isso porque o texto de Ronaldo Correia de Brito avança por metáforas e descrições prenhes de sensorialidade. “Sono abandonado de macho” e “sítios de desejo e terror” são alguns dos inúmeros exemplos em que o lirismo une sensação e imaginação: impossível não entender de imediato o que é um sono abandonado de macho, percepção, curiosamente, mais feminina do que masculina, sendo esta uma expressão que faz sentido prontamente, que coloca em palavras aquilo que sempre entendemos como tal, mesmo que nunca tivéssemos nos apercebido da ideia. Mas algumas outras expressões, quando aparecem em texto impresso, permitem a releitura para uma melhor fruição ou um melhor entendimento. Ao ganhar roupagens dramatúrgicas, contudo, a literatura de Faca acaba concorrendo com o movimento dos atores pelo palco, a musicalidade que permeia a vida monótona dos personagens, a iluminação e o cenário que situam em terras firmes personagens antes imaginados. E é exatamente o concatenar de todas essas informações (e a impossibilidade da releitura de uma cena que está sendo encenada agora) o que pode causar certo atordoamento, que não chega a acontecer, mas que está à espreita; há, porém, uma exigência de trabalho e talvez uma demora para o espectador se encontrar no texto encenado. Nada, entretanto, que impeça o inegável enlevo estético que o espetáculo proporciona.

Redemunho, para não ser atordoante e fazer jus à beleza do texto do qual faz parte, conta com uma cenografia, assinada por Doris Rollemberg, que prima pela discrição sem abrir mão de delicados detalhes. Os figurinos de Flávio Souza seguem a mesma lógica, compondo com o cenário. Em ambos, temos a prevalência de tons pastéis, mas encontramos pequenos bordados e retalhos coloridos, linhas vermelhas entrelaçadas nas cadeiras, no chão e nas roupas. Essas minúcias fazem todo o sentido. Tanto para não mergulhar o espetáculo em excesso de informação, como também servindo de paralelo formal com o conteúdo das quatro histórias, cujo fio condutor é o vínculo asfixiante e desgastante entre personagens presos à própria sorte e uns aos outros, presos num destino que não sabem muito bem se construíram ou se foram por ele determinados. Há uma vida de rotina claustrofóbica e poucas opções de saída, labirinto que roda e roda e roda em torno de um cerne mofado. Todavia, as brechas de paixão que mal podem ser contidas estão lá. Existem, e é possível alargá-las ou ignorá-las. São brechas tão pequenas quanto os fios coloridos aqui e ali no vestuário dos atores. É o caso da mulher enclausurada com as filhas na própria casa, aprisionada pelo marido que detém a chave guardada sempre em um bolso sem fim, figura ameaçadora que aparta a mulher do mundo, casal que é terreno deserto de diálogos. Malgrado tamanha resignação, a mulher não se impede de usufruir lampejos de vida e desejo (tais quais os fios coloridos entrelaçados nas cadeiras de palha do cenário), quando acompanha a vida da cidade através dos ruídos que vêm de fora, até a chegada do circo.

Foto: Silvana Marques

A direção de Anderson Aragón consegue intercalar os contos de modo harmonioso e retomá-los ao final, aproveitando o clímax que vem aos poucos e rompendo com a linearidade sugerida à primeira vista. Mas ouso apontar que talvez essa não tenha sido a melhor ordem dos contos. A escolha, que, dos quatro contos selecionados, é o mais complexo, poderia não ter sido o primeiro. Isso porque é preciso contar com o fato aqui já mencionado de que, pela complexidade do texto literário em pauta e pela aproximação formal com a leitura dramatizada, a plateia talvez demore a se situar, e quem sabe um conto “mais fácil”, que permita a entrada mais imediata do espectador na proposta do espetáculo, funcione melhor.

Já a direção musical de Aldredo Del-Penho consegue introduzir a musicalidade ausente no texto literário (musicalidade apenas evocada), e são belas as músicas escolhidas. Entretanto, em alguns momentos, dificultam o acompanhamento do texto, o que pode prejudicar a compreensão da história. Menos música talvez fosse uma boa opção.

E, finalmente, os atores, fantásticos, que conseguem carregar de emoção e vida o drama de cada um dos personagens. Destaque para Ana Carbatti e Claudia Ventura, cujas vozes e entonações parecem modular exatamente as emoções vividas e contidas, os ressentimentos envelhecidos, comunicando quase que de modo imediato o interior devastado de seus personagens aos espectadores.

Redemunho trata disso: emoções e ressentimentos que tomaram idade, destinos aprisionados, vidas sem saída, obrigações morais aniquiladoras, tiranias disfarçadas de boas intenções, vínculos de amor e ódio, sangue derramado em tormentas familiares sem sentido. Trata de segredos prontos a serem revelados, de esperas insuportáveis. É a paixão estancada em um quotidiano tedioso, no qual as poucas opções de fuga e rompimento são escassas e tão discretas quanto os fios coloridos dos figurinos dos atores.

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

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