Jogo de Cena

Inteligência e Humor em Entonces Bailemos

Por Vivian Pizzinga

 

Foto: Dalton Valério

 

A montagem brasileira de Entonces Bailemos, de Martín Flores Cárdenas, fiel à original argentina, leva à cena, com a leveza e a suavidade que música e dança podem proporcionar, quatro atores e um músico contando histórias várias de relacionamentos. Aliás, de relações. Ou melhor: de qualquer palavra que torne possível o ato de nomear vínculos amorosos/afetivos, dotados de maior ou menor grau de intensidade, sendo mais ou menos frouxos, rápidos, inesquecíveis ou dolorosos entre duas pessoas (ou três, ou mais). Apaixonar-se, desapaixonar-se, morrer de ciúmes, entrar em paranoias, disfarçá-las, pirar em discussões infindáveis sobre a relação, distorcer os ditos do outro, saber mais do que o outro sobre seus próprios ditos a ponto de fazê-lo enxergar o que eles carregam, agredir, reparar, repetir o erro, querer mais, não querer mais, sem contar o descompasso entre as vontades: é disso tudo e algo mais que o texto trata. E se a gente se apaixona, se o amor é inevitável, se estamos entregues e isso é um risco, então, bailemos. Não há nada melhor a fazer.

O espetáculo, que cumpriu temporada no SESC Copacabana, é ótimo. E em tudo: o texto, engraçado e inteligente, instigante do início ao fim, ganhou tradução para o português da romancista premiada Paloma Vidal.  A direção e a dramaturgia, do próprio Cárdenas, com Kika Freire como diretora assistente, constroem, de modo brilhante, a dinâmica da sucessão de histórias e de coreografias, pontuadas, aqui e ali, por o que seriam pequenos conflitos internos entre atores e personagens, expressando a mistura de metalinguagem e linguagem, num mix paulatino que encontra equilíbrio perfeito em seus 60 minutos de duração. Um exemplo em que fica mais evidente o recurso da metalinguagem, assumindo uma forma divertida, é quando as atrizes, vez ou outra, disputam o personagem da história da vez, ou quando brigam pela próxima história, chegando a se engalfinhar no colchão, para que uma não roube a cena da outra e vice-versa. O jogo é bom e faz rir, e há até o breve momento do ringue: tirada de gênio.

Certa dose de gaiatice inerente à coreografia original de Manuel Atwell vai aos poucos se evidenciando e se acopla a um humor crescente, que parece permitir-se aflorar à medida que o espetáculo avança, de forma análoga a uma pessoa, que, à primeira vista, aparentasse reserva, mas que, aos poucos, à proporção em que se sente à vontade e ganha confiança no ambiente ao redor, vai conseguindo mostrar sua espontaneidade e sua capacidade de criar e lançar mão do que é engraçado: assim é Entonces Bailemos, cuja dramaturgia torna-se cada vez mais desenvolta e, generosamente, leva junto seus quatro atores e o músico, os quais se expandem e parecem sentir-se aos poucos mais à vontade, dando vida a histórias que revelam suas facetas bizarras e engraçadas. Ou à medida que podemos tornar hilárias as facetas supostamente bizarras das histórias de cada um de nós. É claro que nada disso seria possível sem a qualidade desses mesmos atores e da direção que os conduz – Elisa Pinheiro, Gustavo Falcão, Leonardo Netto e Marina Vianna, os quais são acompanhados pelo músico convidado, Ricco Vianna, que, aliás, parece nunca ter estado em outro lugar na vida senão em um palco de teatro: eles conseguem, todos, sem exceção, encontrar a justa medida entre o drama mais carregado (quando necessário, e pontual) e o humor muito próprio do não se levar a sério. O pressuposto tácito é: rir de si mesmo é preciso, o que não deixa de remeter ao cerne da noção de humor de Freud, que o aponta como ferramenta do superego para proteger e consolar o ego do sofrimento. E é o ego que sofre de amor. Se a gente for capaz de rir do ego, com o ego, de rir do que pode levá-lo a um sofrimento maior, estaremos, ao mesmo tempo, cumprindo a função de protegê-lo desse mesmo sofrimento, ou de evitar seu paroxismo.

 

Foto: Dalton Valério

 

É assim que os personagens/atores intercalam-se nas histórias que contam sobre encontros e desencontros amorosos, extraindo esse humor necessário. Há sempre uma música perfeita para cada ocasião, com a qual as histórias dialogam. O arroubo afetivo e emocional também pode estar à espreita, e é preciso lidar com ele. Quando menos se espera, a censura cede um pouco suas atribuições de dever moral, de continente do afeto caótico, e, se duvidar, já estamos beijando apaixonadamente o cantor. Quem nunca?

A prioridade dada à narrativa se reflete num cenário minimalista, com um colchão de casal ao centro, onde os atores e os músicos ficam e de onde partem para contar seus casos. A iluminação fria, desprovida de intenção de aconchego, parece cumprir o papel, de mãos dadas com o cenário, de não desviar a atenção para nada que não seja o conteúdo do que é narrado e, claro, a forma como o é. É assim que o texto cumpre sua função de trazer à baila as diversas formas que cada um pode ter (inúmeras, inenarráveis – mas aqui tornadas narráveis ou, melhor, dramatizáveis – e incontáveis) de lidar com as reações ao outro e com o outro.

Evitando dar spoiler, mas podendo cair na tentação de dar algum (fica aqui a breve advertência para quem ainda não viu o espetáculo), destaco dois momentos: o primeiro é o do casal que entra numa espiral interminável de um diálogo que nada mais é do que escrutínio sobre a medida do tesão do outro – a pergunta se resume a algo mais ou menos assim: afinal, mulher, sobre aquele beijo minutos antes, aquele mesmo que não se pode negar ter acontecido justo aqui na nossa frente, você se excitou com ele? Essa indagação, absolutamente incapaz de disfarçar o desespero que aí se encerra, se desdobrará em outras, várias outras, e também em interpretações, em mal-entendidos, em vaivéns. No final das contas, para quem assiste, resta a seguinte pulga atrás da orelha: de fato, a mulher teve certo tesão ou foi levada a criá-lo a partir da própria DR que se tornou interminável? Aquilo que é revelado, ao término do interrogatório investigativo, se constitui em fatos ou interpretações? Como diria o personagem do filme O cidadão ilustre (Mariano Cohn, Gastón Duprat, Argentina, 2016), o que chamamos fato é a interpretação que prevaleceu sobre as demais. E estamos continuamente construindo interpretações e entendimentos sobre nós mesmos, sobre o que sentimos e o que fizemos. Assim, caberia a pergunta: o tesão, se de fato existiu, é maior no momento em que acontece ou no momento de sua confissão, quando assume a forma de palavra? E como contornar ou sair de tal interrogatório labiríntico, interminável, asfixiante?

O segundo trecho que destaco é o da mulher que relata o encontro sexual/amoroso com o último homem com quem esteve, que, diferente dos outros (e os outros, ela faz a ressalva, não foram poucos), parece de algum modo a ter levado em consideração de forma especial: olhou-a nos olhos, disse as palavras certas nas horas certas, preocupando-se em dizê-las, pediu para dormir um pouquinho mais depois do sexo e perguntou se ela se incomodaria, e foi tudo ótimo, para não dizer excelente. O que essa mulher descobre, não sem dificuldade para encontrar a expressão mais adequada à descoberta, é a sensação inédita de se encontrar a salvo. Mesmo que não saiba de quê. Se fizéssemos aqui um exercício breve de descolar esse relato do espetáculo e das estranhezas (tão corriqueiras, diga-se de passagem, tão nossas) que o texto busca iluminar, e com a prudência de não cair em estereótipos apressados, poderia ser dito que isso é o que quase toda a mulher quer, ao menos no âmbito do discurso. Mas a mulher específica que traz o relato está nitidamente perturbada diante de tanto carinho, um pouco irritada até, eu arriscaria dizer, diante de tanta coisa dando certo e apontando para um bom desfecho, ou para um bom começo, ou, enfim, para a continuidade tranquila. E assim nada termina como se imagina que poderia terminar uma história que, a princípio e aparentemente, parecia levar a bons caminhos. Há, além dessas, outras diversas histórias, todas com suas cotas de curiosidade, peculiaridade, humor e tensão.

 

Foto: Dalton Valério

 

À guisa de comentário final, não posso deixar de apontar que as soluções dramatúrgicas para essas histórias e suas conclusões, todas escolhendo o caminho simples, são interessantíssimas e, neste sentido, faço breve menção à solução dada à nudez do homem numa das primeiras histórias. Só esse ponto – risco de polêmica enorme – já daria um texto inteiro, por isso me refugio no comentário. Entonces Bailemos evidencia que a nudez no teatro não precisa ser literal (por que, provocação rápida, a quem ela serve e que argumentos podemos usar para justificar a servidão?). Pode-se argumentar que a especificidade da dramaturgia da peça permite escapar dessa exigência de literalidade, dado que são histórias contadas, umas atrás das outras, por aqueles mesmos atores, que vão assumindo os papéis ou a prerrogativa de narração, de modo dinâmico. Mas a especificidade não vincula um tipo ou outro de expressão dramatúrgica, e é claro que outras escolhas poderiam ser feitas. Minha conclusão provisória é a de que é ótimo quando não se precisa provar nada (atores, diretores, autores) através da nudez (como se ficar nu fosse prova do que quer que seja). Resulta em alívio quando todos nós nos liberamos disso e quando o foco do que é contado não é desviado para um elemento irrelevante que pode acabar cooptando a atenção do espectador em detrimento do que realmente se quer comunicar. Entonces Bailemos é o tipo de espetáculo que faz pensar e faz ter vontade de falar sobre. Que deve, enfim, ser revisitado.

A peça, que teve diversos prêmios e indicações, além de ter sido encenada em lugares como Buenos Aires, México e Chile, com diferentes elencos, chega ao Brasil ganhando segunda temporada no Espaço Sérgio Porto, no Rio de Janeiro.

 

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

 

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