Jogo de Cena

BEBERAGENS DE ESPECTADOR: Dançar para que o céu não caia

 Por Marcus Groza

 

Cena de Para que o céu não caia / Foto: Sammi Landweer

 

Antes de entrar para ver Para que o céu não caia, de Lia Rodrigues, abri o programa e li as palavras acima. O espetáculo é inspirado no livro A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa. De imediato, podemos dizer que no espetáculo nada indica uma relação figurativa com o universo ameríndio e, nesse caso, o interesse aqui não recai sobre o aspecto tradutivo que nele possa haver em relação ao livro ou em relação ao mundo ameríndio: gostaria de fazer aqui um exercício mais simples, trazendo o relato da minha experiência como expectador desse espetáculo, no MIT-SP, em março de 2017.

Ao entrar, recebemos uma pequena toalha: a sala de apresentação está vazia, um linóleo preto, limpo com esmero. Como não fui um dos primeiros a entrar, apenas aderi à enorme roda que se começou a formar, todos sentados no chão, em roda. Talvez tenha sido decisão dos espectadores se sentarem daquela maneira, não sei. O estranhamento começa quando, como espectador, não defino muito bem que lugar devo ocupar. Enquanto todos vão se sentando, dois performers/bailarinos começaram a lançar pó de café ao longo das beiras da sala: estranhamento e sinestesia. Ao começar o espetáculo – e digo assim apenas por força do mau hábito que temos de achar que a coisa começa quando entram os artistas e a luz entra em ação –, os outros bailarinos entram portando potes que colocam sobre duas extremidades da sala no chão onde há pó de café. A entrada e essa ação já me mostram que o círculo formado por nós, espectadores, não vai funcionar: muitos como eu estavam de costas para os bailarinos. Todos se voltam, alguns se levantam. Os bailarinos em silêncio, com muita tranquilidade, aproximam-se e bordejam o público: apenas depois de longo instante, alguns deles vêm até nós e fazem um pequeno gesto ou resmungam baixinho algo incompreensível. Depois de outro instante, o público se junta ao centro. “Parece que finalmente acertamos, ufa! Agora vai começar”, penso. Depois entendo que já tinha começado e uma troca não-verbal, da ordem do sutil, já tinha se estabelecido.

Como espectador, posso dividir o espetáculo em duas partes: a inicial, em que não sei onde devo me posicionar, e a segunda, na qual uma roda se (re)estabelece e os bailarinos dançam no centro. Gostaria de destacar a primeira parte e, mais especificamente, o estado de liminaridade que, nessa primeira parte do espetáculo, se fez emergir para mim.

Depois que finalmente nos postamos no centro, os bailarinos em uma das extremidades da sala, próximos às paredes, dirigem-se aos potes que tinham colocado ali. Tirando de dentro um composto negro – que pelo cheiro do início julgamos ainda ser pó de café – pintam o rosto e depois todo o corpo, sempre com gestos controlados, em uma atitude cerimonial. Depois dessa caracterização, o olho – sempre bem aberto – ganha uma expressividade incomum. Levantam-se muito lentamente e caminham na nossa direção. Estamos sentados no piso, vulneráveis. Mas somos maioria.

Num estado de desaceleração acentuado, eles começam a atravessar a pequena multidão que somos, abrem caminho. Param diante de alguns de nós e aproximam o rosto a poucos centímetros e ficam nos encarando por um longo tempo. Olhos arregalados. Atravessam com extrema calma e delicadeza, mas fica claro que, vindo em nossa direção, vêm como se pudessem trombar em um de nós ou nos derrubar. Por isso, talvez, abrimos espaço. Sentam-se diante dos que estão sentados para encará-los e, da mesma forma, encaram os que estão de pé. A dilatação temporal ganha relevo, junto com a meia-luz e o silêncio: abrem um estado de suspensão, o ar parece mais espesso. Não sei o que vai acontecer comigo; isso talvez caracterize bem a liminaridade. No caso em questão, os códigos reconhecíveis do que seja dança ou teatro estão em suspensão.

 

Foto : Sammi Landweer

 

Um estado de suspensão é aberto para mim como espectador naquele momento: a sensação de não saber o que ia acontecer comigo não era exatamente um medo. No início, tive receio de que algum deles viesse me encarar, prevendo que seria desconfortante, como no jogo infantil de ficar encarando o outro sem piscar. Depois desejei que viesse, sim, curioso sobre o que poderia experienciar a partir desse contato quase íntimo. Quando um bailarino vem encarar uma pessoa na minha frente, tento também encará-lo (Embora ele não tenha me olhado, parece que foi aí que entrei no jogo; fui capturado talvez). Em seguida, uma outra bailarina vem encarar uma mulher que estava ao meu lado, e eu, novamente, tentava atrair o olhar dela fixamente como se fosse comigo. Assim que a bailarina se levanta, essa mulher que está ao meu lado também se levanta e a persegue, ficando, como que seduzida, olhando pra bailarina, enquanto esta continua encarando outras pessoas. Ao acompanhar essa “cena” entre uma bailarina e essa espectadora, ainda sentado, virei a cabeça e fiquei absorto assistindo àquela  “perseguição” – coisa discreta que poucos devem ter notado. E foi, nesse momento, que tive medo, sim: num dado momento, tenho um susto com uma movimentação à minha frente: podia ser uma outra pessoa vindo me encarar e eu estava, desguarnecido, entregue, com a cabeça voltada para trás. Não era. Nisso levanto e de longe continuo observando a mulher do público que ainda persegue a bailarina; enquanto esta, impávida, segue encarando outras pessoas. Nisso me ocorreu que talvez aquele modo de encarar fosse uma tentativa de dar ignição numa espécie de telepatia, numa intercomunicação mágica, silenciosa, numa comunicação sutil e não-verbal. A liminaridade é um estado de suspensão radical, em que se instaura uma instabilidade e mesmo certa vulnerabilidade. O estado liminar dá margem a devaneios: para mim, naquele momento, com toda a realidade, a telepatia parecia integralmente realizável. Por definição, na liminaridade não se distingue bem o que pode ser do que não pode ser.

Depois de nos atravessarem uma vez, os bailarinos vão até o outro lado e pintam todo o corpo com uma farinha branca e novamente atravessam, encarando as pessoas, longamente, indo até o outro lado. Começa então uma terceira travessia, para a qual os bailarinos agora colocam um trapo sobre o rosto e vêm em nossa direção, agora rastejando e zurrando, rastejando e gemendo. Instauram um clima de alta histeria. Novamente, vêm em nossa direção como se fossem trombar conosco, se não desviarmos. Já não somos mais um bloco no centro. Lentamente vêm na minha direção. É quase uma ameaça. Parecem, nesse ato de atravessar o público, uma força da natureza. Nessa terceira travessia, o deslocamento no plano baixo traz uma presença animal.

A segunda parte do espetáculo – nessa divisão que visualizei como espectador – certamente reverbera sob o signo liminar também. Mas agora há distinção entre público em uma grande roda e os bailarinos no meio. Às vezes, a roda precisa abrir um pouco mais; outras, pelo movimento convulsivo da dança parece que um deles pode se chocar com alguém do público. Embora o espetáculo todo seja sem música, o barulho dos pés roçando no chão enquanto dançam e a respiração ofegante dos bailarinos formam uma sonoridade vitalista, que pude notar num campo de sensibilidade poroso a micropercepções que não seria o mesmo se não tivesse sido instaurado aquele estado de liminaridade da primeira metade do espetáculo. A meia luz que predomina no espetáculo colabora muito para a liminaridade que se instaura. O curry com que mancham todo palco na cena final parece um pó muito brilhante quando então a luz aumenta, e o seu cheiro ressoa por um bom tempo no nariz, depois que saímos da sala de apresentação.

 

Foto: Sammi Landweer

 

Marcus Groza é poeta, dramaturgo e encenador. Autor do livro “e a lua como órgão principal” (Ed. Primata – 2017), entre outros, é doutorando em Artes Cênicas (Unirio) e editor da Revista Abate e da Revista Saúva.

 

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