Jogo de Cena

A relação entre o humano e o não-humano no espetáculo canadense SIRI

 Por Vivian Pizzinga

 

Foto: Julie Artacho

 

SIRI é o nome de um sistema operacional da Apple, um software que nos faz lembrar de filmes como Her (de Spike Jonze) e Blade Runner 2049 (de Denis Villeneuve). A diferença, entretanto, além das que se referem aos aspectos formais/ficcionais próprios de cada uma das linguagens artísticas específicas, isto é, a dramatúrgica e a cinematográfica,  é que, no caso de SIRI, estamos falando de algo real, um aplicativo que existe, que funciona, que muitas pessoas usam diariamente, ao passo que Samantha, em Her, e os replicantes de Blade Runner (Ridley Scott) e Blade Runner 2049 são o auge do que se imagina, a cada época, sobre o estado ao que pode desembocar a evolução das máquinas e robôs e sua relação com a vida humana diária. SIRI não faz tudo o que Samantha faz, mas faz muita coisa. De fato, parece já haver à disposição de todos nós uma opção de secretária e faz-tudo, por assim dizer, que, no mundo de internets, virtualidades, redes sociais e googles da vida, está pronta e hábil para resolver todos os pequenos e grandes problemas que enfrentamos rotineiramente.

SIRI é também o nome do espetáculo canadense inédito no Brasil, com direção de Maxime Carbonneau, em que a atriz Laurence Dauphinais, no palco do teatro, interage com esse aplicativo em tempo real. Apesar de se tratar de um aplicativo e de haver um texto mais ou menos prévio, a interação com um dispositivo tecnológico como esse dá margem à possibilidade de variações imprevistas, de um diálogo inédito a cada apresentação. O espetáculo – meio dramatúrgico, meio performance – esteve em cartaz no Teatro do Oi Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro.

Inicialmente, Laurence se apresenta em português à plateia, falando um pouco de sua vida e de suas origens e contando que é filha da tecnologia: sua mãe fez inseminação artificial em 1982 com um doador que apresentava semelhanças físicas com seu marido mas cujo anonimato era uma condição de todo o procedimento. Laurence nasce, então, em julho de 1983, é câncer com ascendente em câncer e lua em escorpião e não tem como fugir dos questionamentos sobre suas origens, assim como assinala e considera as influências astrológicas em sua vida uma inquietação que perpassa o espetáculo e sua interação com o aplicativo SIRI. É nesse sentido que a pergunta sobre os outros 50% que lhes deram origem (o doador desconhecido) parece ser uma constante na vida de Laurence e, em seu diálogo com o software, a temática da paternidade surge aqui e ali quando a atriz indaga a ele sobre o que acha de Steve Jobs, por exemplo, e se o considera como sendo seu pai. Tudo isso é feito com legendas eletrônicas.

 

Foto – Julie Artacho

 

O que há de muito interessante na ideia de Maxime Carbonneau e Laurence Dauphinais é que, dentro das limitações de um teatro (isto é, a partir de uma perspectiva bem diferente daquela do cinema, quando a temática aparece em Her, por exemplo, e Samantha, o sistema operacional que tem a voz de Scarlett Johansson, é ilimitada em suas respostas, nas entonações e variações de voz com que conversa com o seu ‘dono’, em suas capacidades e interesses), há uma tentativa instigante e exitosa da dupla canadense de tematizar essa relação do humano com a tecnologia. Aliás, com as novíssimas tecnologias, cujo avanço veloz deixa para trás as soluções e as respostas aos impasses éticos que surgem em relação a elas. Fazemos, assim, malabarismos inimagináveis com todos esses sistemas, resolvemos problemas em segundos e a distâncias impensáveis, acumulamos dados que nossos armários e prateleiras jamais conseguiriam comportar, mas não sabemos lidar com suas consequências e com as questões éticas que tudo isso pode ocasionar.

A interação do humano com a tecnologia e as consequências daí derivadas não se resumem apenas aos dispositivos eletrônicos, objeto específico que o espetáculo escolhe abordar. O exemplo do filme Náufrago (de Robert Zemeckis), em que o personagem de Tom Hanks interage com uma bola e a batiza de Wilson, já mostra claramente o quanto precisamos da interação com o outro, ainda que desprovido de humanidade ou apenas dotado de uma humanidade atribuída. A bola de Tom Hanks não respondia às suas perguntas. Não resolvia seus problemas de localização, não fazia contato com bases militares, nem era capaz de lançar mão de uma música para distraí-lo num momento de solidão. Por outro lado, se é que Wilson respondia às interpelações do náufrago, tais respostas existiam apenas em nível imaginário. Um software como SIRI, por sua vez, tem múltiplas respostas a uma mesma pergunta, mesmo que elas aqui e ali se repitam, ou ainda que não façam sentido. Com todas as limitações, SIRI oferece algum tipo de resposta. Algum diálogo, alguma interação, certa distração.

 

Foto – Julie Artacho

 

Laurence vai, portanto, tentando puxar de SIRI assuntos mais humanos e menos informativos. Ela quer ir além das reconhecidas habilidades técnicas de SIRI, persegue seus furos, dado que o software é bom em informar, mas e quanto aos afetos e às temáticas simbólicas, como o aplicativo se resolve com isso? Laurence quer saber se SIRI sente falta de Steve Jobs, se tem um pai, se é feliz, se é mulher e, finalmente, se sabe qual é o sentido da vida.

A peça mostra também que a busca por uma conversa com o aplicativo que se assemelhe a uma interação entre humanos pode gerar frustrações. SIRI pode parecer cínica ou irônica, mas não passa de um software que não sabe ler modulações de afeto e tonalidades emocionais, que não sabe manejar uma discussão porque não está implicada nela, e não o está porque é apenas isso: um software que engana bem, mas só por enquanto. O espetáculo também levanta, inevitável e implicitamente, o aspecto segundo o qual essas variadas tecnologias influenciam e produzem impacto em nossas vidas. Aborda-se, pela via dramatúrgica e artística, exatamente o que Bruno Latour já levantava em sua Teoria do Ator-Rede (TAR), ao falar sobre a mediação técnica em sistemas híbridos, em que atores humanos e não-humanos têm mútua influência entre si, em que a ação sociotécnica leva em conta necessariamente a simetria entre esse humano e o não-humano que o cerca, tal como no espetáculo canadense, que alça SIRI à categoria de coautora do texto e que a insere nos créditos referentes ao elenco da peça.

 

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

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