Jogo de Cena

UM OLHAR SOBRE O JOGO DE SER EFÊMERO

Por Rafael Morais

 

Foto: Kenia Vartan

 

É muito interessante a relação entre o nome deste caderno, “Jogo de Cena”, com o tema que abordaremos em sua estreia: a Improvisação Teatral. Antes de tudo, pensei em um tema que estivesse presente em tudo que realizamos no teatro, assim como o próprio jogo, inerente à atividade teatral. A improvisação tem papel relevante em todos os meus processos criativos e de formação artística. Interage tanto com o ofício do ator, quanto com o do contador de histórias, palhaço e o teatro de rua, destaques estéticos do Teatro Griô, grupo do qual sou um dos fundadores e coordenador artístico.

A improvisação existe como elemento implícito em qualquer ato teatral, mesmo num teatro que pretende formalizar o seu resultado como uma criação acabada e previamente elaborada, que objetiva uma forma final (produto acabado) fechada ao improviso. Nestes casos, a improvisação deixa de existir apenas aparentemente, permanecendo submersa, pois a arte teatral por si só é improvisacional. O ato de improvisar no teatro, entretanto, não deve ser confundido com a atitude de realização com pouco ou nenhum preparo prévio.

Julgo importante frisar que a improvisação, além de ser inerente ao teatro, ela, justamente, origina o próprio teatro e tem se desenvolvido desde os primórdios do fazer teatral. Mas, em muitos momentos do percurso do teatro através dos tempos, a improvisação descreve um percurso dinâmico que vai desde a condição de primeiro e único recurso, tornando-se posteriormente a se constituir uma atividade subliminar, até chegar a ser um elemento autônomo de expressão, de forte relevo em determinadas manifestações teatrais.

A improvisação teatral, segundo Sandra Chacra, importante estudiosa do tema, não encontra um espaço privilegiado nos registros escritos do chamado teatro tradicional, sobretudo o de base literária, não sendo, portanto, as fontes históricas sobre a improvisação teatral, referências sustentadas em fundamento textual mais amplo. As formas e os meios de improvisar no teatro foram se desenvolvendo de forma subterrânea, juntamente com um fazer mais ligado ao teatro popular, desde as épocas primitivas, perdurando como manifestação até o presente. Desde as representações dionisíacas, precursoras da cena formal, além da estrutura ritual, comportavam uma série de expressões mimo-dramáticas improvisadas. “A Improvisação é a raiz, não somente da tragédia, como também da comédia”. (CHACRA, 1983, p. 24-25).

Desde a antiguidade, a improvisação existe como uma forma de transmissão a partir de aspectos ligados à oralidade, como elemento de destaque de determinadas formas de espetáculo muitas vezes originadas de experiências ligadas ao teatro mais popular. Não dá para realizar, neste artigo, um estudo panorâmico da improvisação teatral ao longo da história*, no entanto, gostaria de chamar atenção aqui para esse fio que segue subterraneamente através dos tempos, o que a aproxima muito de uma forma de sobrevivência e disseminação inerente à tradição oral, como foi o caso de sua presença tanto nos primórdios das farsas atelanas, que improvisavam com tipos determinados em que se pode reconhecer os progenitores das futuras máscaras italianas da commedia dell’arte, passando pelos saltimbancos, bufões, acrobatas, prestidigitadores, charlatães e outros, que representavam all’ improviso nas praças e feiras desde os primórdios da Idade Média. “Da mesma forma, a improvisação também está presente nas festas medievais, como a ‘Festa dos Reis’, o ‘Carnaval’, a ‘Festa dos Loucos’ e outras.” (CHACRA, 1983, p. 29).

Após o desaparecimento da commedia dell´arte, a improvisação continua a manter-se no decorrer do século XIX em espetáculos marcadamente populares como a pantomima, o circo, o teatro de variedades (music-hall, cabarés). O próprio Stanislavski, preocupado com uma representação mais sincera e verdadeira, propõe ao ator uma preparação através da improvisação. Meyerhold, por sua vez, integra o improviso no próprio espetáculo, seja para estabelecer traços estilísticos, seja para comunicar aspectos sócio políticos. Artaud, dentre seus objetivos, tem o de tornar o teatro uma “linguagem da improvisação” e chega a pensar num teatro cuja peça seja composta diretamente em cena. Gordon Craig e Jaques Copeau, entre outros, valorizam o espetáculo, a atuação, o jogo cênico, o gesto, a expressão corporal e vão beber na mesma fonte em que nasce o espírito da improvisação teatral.

De um modo geral, todos os encenadores do teatro moderno se valem da improvisação num grau maior ou menor, seja na preparação ou durante os espetáculos, como o chamado “Teatro Participação” **, e grupos como o Living Theater, Open Theater, Bread and Puppet, dentre outros, sem esquecer os brasileiros que recorrem à improvisação como linguagem de destaque, tais como Augusto Boal, com o “Teatro do Oprimido”, e José Celso Martinez Corrêa, com o “Te-ato”, os quais consideram que o fenômeno teatral nasce e se concentra quase exclusivamente na co-autoria ator-público.

Na prática por nós desenvolvida no Teatro Griô, por exemplo, a improvisação teatral integra tanto os ensaios quanto o momento da apresentação, através de estratégias diversas. A arte do improviso auxilia e dá suporte à criação cênica, apresentando possibilidades de interação com a plateia. Os elementos criados em meus processos criativos a partir da improvisação estão apoiados na própria prática de ator, professor de teatro e preparador de elenco, utilizando ainda experiência como especialista nas técnicas de palhaço e contador de histórias. Parte de inspirações diversas, como palavras, imagens, manipulação de objetos, jogos e estratégias de improvisação tanto para a criação do texto quanto da encenação.

A arte de narrar histórias, elemento-chave de nosso fazer teatral, tem, também, forte marca de improvisação. A própria relação com a oralidade confere à arte do cronista oral muita aproximação com elementos ligados à improvisação teatral. Não tenho como objetivo, no processo criativo de encenação de histórias, “decorar” a narrativa de maneira convencional, numa forma fechada, mas trabalhá-la como uma trama, um fio narrativo entrelaçado com fatos fundamentais, imagens, emoções, atmosferas, conflitos, desenlaces que se organizam de maneira a estabelecer o percurso narrativo desejado. De modo alusivo, o griot tradicional do contexto africano também assume a improvisação no tratamento dado a uma trama narrativa tradicional:

Uma narrativa tradicional possui sempre uma trama ou base imutável que não deve jamais ser modificada, mas, a partir da qual, pode-se acrescentar desenvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiração ou a atenção dos ouvintes. (HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 192).

Ao visualizar esta trama, com as muitas imagens que ela implica, o ator-griot*** improvisa o seu texto apoiado na cena da oralidade. Isso não quer dizer que ele irá inventar tudo na hora, ou que não tenha preparo prévio, mas, muito pelo contrário, o preparo para este tipo de desempenho é imprescindível. A improvisação, neste caso, além de ser elemento chave na concepção da cena, é também destaque no momento da encenação, uma vez que este ator estabelecerá um contato mais direto com a plateia, a qual em determinados momentos poderá até participar como co-criadora da cena, resultando, por conseguinte, em uma maior abertura para a realização de uma atuação improvisada.

Nesta experiência em que o ator contracena diretamente com a plateia, ele vai naturalmente ajustando sua atuação (texto, estratégias, ritmo etc.) em resposta aos espectadores e ao momento. Tem a liberdade de, no andamento da cena, caso ele mesmo julgue pertinente, simplesmente fazer como tinha planejado nos ensaios, ou adaptá-la, suprimir alguma parte, acrescentar outra, interromper em determinado ponto a narrativa e realizar um jogo de animação da plateia, para logo a seguir retomar a narrativa de onde havia parado.

As tramas, no contexto de meus processos criativos junto ao Teatro Griô, diferentemente das histórias simplesmente narradas, estimulam a criação de diversas estratégias de transposição da narrativa para a cena e criação de personagens, inclusive do próprio personagem narrador. Também permite ao ator-griot interagir diretamente com o público num ato de desvendamento de sua própria personalidade de forma poética, a partir da encenação dos mitos e contos populares e das narrativas criadas da sua própria memória, bem como dos jogos de interação com a plateia.

A improvisação acaba por alinhavar um tecido que sustenta o próprio jogo teatral, principalmente numa metodologia como a do Teatro Griô, que privilegia a cena do ator em comunhão com elementos técnicos e estéticos do palhaço, contador de histórias e teatro de rua, dentre os quais a improvisação é elemento-chave na composição cênica em todas as etapas do processo criativo.

Não é possível vivenciar o transitório jogo da cena teatral sem praticar a arte de improvisar. O ator sabe que é preciso re-viver a cada espetáculo, a cada encontro com o público, o jogo efêmero do teatro, onde, apesar da busca da repetição, daquilo que foi perseguido nos ensaios, é impossível se fechar ao novo. E, caso esta experiência se cristalizasse, numa forma fria e acabada, tornar-se-ia sem vida. Morreria o jogo. Deixaria de ser teatro.

 

Notas:

 

* Além de Chacra (1983), “Natureza e Sentido da Improvisação Teatral”, e da obra de Viola Spolin (1979), destacando-se o título “Improvisação Para o Teatro”, uma visão panorâmica do percurso da improvisação no teatro, pode ser vislumbrada, de forma implícita, ao analisar muitas obras sobre o teatro, como por exemplo, “O Parto de Godot” de Luis Fernando Ramos (1999), no capítulo 1, que aborda a história da rubrica, e o histórico sobre o non sense na história do teatro composto por Martin Esslin (1968), no seu “O Teatro do Absurdo”, capítulo 1: o absurdo do absurdo. Claro que, ao contrário de Chacra, os outros dois trabalhos dos autores citados não tratam explicitamente de improvisação teatral, mas, ao tratar da história da rubrica, ou do percurso do non sense, eles acabam permitindo agregar dados, de forma panorâmica num mesmo capítulo, a essa possível reconstituição de um fio imaginário de um percurso da tradição oral da improvisação teatral. Isso sem contar com a análise de obras específicas da História do Teatro.

 

** Notadamente o dos anos sessenta, realizado nos Estados Unidos, também conhecido, além de “Teatro Participação”, com os nomes de “teatro experimental”, “teatro em processo”, “teatro de contestação” ou “teatro improvisado”. Tratam-se na verdade de diferentes tipos de “participação”, na qual podem ser englobados, por terem todos, em comum, alguma participação “ativa” do espectador e ser a improvisação a base de seus trabalhos.

 

*** Utilizo o termo ator-griot, para designar o ator que cria um personagem narrador, inspirado poeticamente em narradores tradicionais do noroeste da África, denominados griots, que têm a função de alinhavar as narrativas encenadas, inclusive as narrativas criadas a partir da experiência de vida do próprio ator. A utilização do termo ator-griot foi de grande valia para facilitar a compreensão da especificidade de atitude deste ator, como concebido na pesquisa realizada por mim no âmbito do PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cenicas – UFBA, e, para auxiliar no entendimento do que foi exposto no cotejamento com os procedimentos assumidos por tradicionais encenadores do teatro. Caso haja interesse numa maior compreensão do termo e, consequentemente, do processo criativo integrante da pesquisa, no qual se constituiu da criação e encenação de uma trama de narrativas inspiradas nos griots, pode-se consultar a Dissertação (citada nas referências ao fim deste artigo), onde foram tecidas determinadas especificidades a respeito do desempenho deste ator-griot.
 

 

REFERÊNCIAS:

 

CHACRA, Sandra. Natureza e Sentido da Improvisação Teatral. São Paulo: Perspectiva, 1983.

 

ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

 

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A Tradição Viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África Vol. I. São Paulo: Ática/Unesco, 1982.

 

RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética da cena. São Paulo: Hucitec, 1999.

 

SOUZA, Rafael Morais de. Na Teia de Ananse: um griot no teatro e sua trama de narrativas de matriz africana. Orientadora: Profª. Drª. Hebe Alves da Silva. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011.

 

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1979.

 

 

(Rafael Morais é ator, diretor e professor de Teatro. Mestre em Artes Cênicas – UFBA, é também Coordenador Artístico do Teatro Griô. Dirige os grupos artísticos residentes do Teatro Griô: “Akpalôs – Fazedores de histórias” e “Cia de Teatro Baobá”)

Contato: rafael@teatrogrio.com.br

 

 

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3 Comentários

  1. Muito bom Rafael, um reforço para apreendermos a importância da improvisação, tanto durante o processo criativo (o que tenho experimentado com muito prazer nas oficinas), como durante o próprio espetáculo, porque, aqui, “não é possível vivenciar o transitório jogo da cena teatral sem praticar a arte de improvisar. (…)E, caso esta experiência se cristalizasse, numa forma fria e acabada, tornar-se-ia sem vida. Morreria o jogo. Deixaria de ser teatro.” Você disse tudo!

    Parabéns pelo texto e adorei conhecer um pouco mais do contexto histórico da arte de improvisar. Fantástico.

  2. Rafael, desculpe da demora em comentar, mas confesso que quanto mais leio esse maravilhoso texto, mais descubro coisas novas na Arte de Improvisar, o que nos ajuda tanto a desvendar o mistério de fazer TEATRO. Sou encantado com esta arte e agora descobrindo junto a arte da palhaçaria, vejo o quão é importante o IMPROVISO, pois afinal o SER PALHAÇO não pode negar nada ou seja, tem que sobressair de cada situação, não é mesmo?… rsrsr.
    Enfim, gostei muito quando disse que:…”Improvisação é a raiz, não somente da tragédia, como também da comédia”; onde realmente com as técnicas de improvisação conseguimos EVOLUIR muito mais rápido nas cenas trabalhadas após leituras rápidas de um texto ou situações imaginárias partindo de alguma instrução momentânea, que através de uma simples vertente temos: “onde”, “quem”, “situação de conflito” e chegando até o ápice do improviso, surgindo de um simples ato e ações, chegamos a grandes histórias cheias de emoções… Após essas instruções sabemos e sentimos a cada cena de improviso o verdadeiro teatro! A impressão que temos é que o fazer teatro desta forma se torna aquilo que imaginamos muito mais vivo e trazemos para a realidade ações, sentimentos e a troca de informações onde este JOGO por assim dizer entre o Ator e o público, tende-se a ficar cada vez mais real e com brilho!… NOSSA O REAL DO IMAGINÁRIO!! Fantástico não é mesmo ???
    Portanto, dentro desse contexto estamos vivenciando coisas maravilhosas no teatro, nas ruas e utilizando até mesmo no dia-a-dia, onde sofremos menos e vivemos mais… nos tornando assim um cidadão melhor com esta arte mágica de improvisar e teatralizar. O importante em tudo isso, como você mesmo disse, é viver o máximo deste jogo, descobrir coisas novas em cada momento, e não deixar se cristalizar com gestos ou ações, e sim deixar se permitir que com essa experiência, seja cada vez mais prazeiroza em nossas vidas e assim possamos criar e CRIAR cada vez mais nesse mundo infinito de DESCOBERTAS!

  3. Parabens pelo texto Muito bom. Gostaria de saber mais sobre o curso.

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