Olhares

ASSIMETRIA, ESBOÇO E PROJEÇÃO: A ARTE DE FELIPE STEFANI

Por Hilton Valeriano

Desenho: Felipe Stefani

Pode a arte apreender o movimento primevo do nascer das coisas e dos seres, de seus gestos, acontecimentos, vivências? Antes do fato, os sonhos; antes do anseio, os projetos; sempre a possibilidade.  Os desenhos de Felipe Stefani, artista convicto em seu ofício, parecem demonstrar o fluxo premente da existência antes de sua realização nas dimensões da temporalidade. Uma obra marcada por traços assimétricos, onde início e fim confluem, onde o desfecho paradoxalmente inconcluso expressa formas vindouras, repletas da instabilidade característica do movimento, e que revelam um intento permanente de criação. Longe de uma mera abstração sintética, seus desenhos manifestam a forma, isenta de toda matéria, em seu prenúncio. Sua subjetividade de artista busca o instante nascedouro, o esboço humano de concretização, o que nos leva à questão da definição de um ser em sua essência.

Se as ações do homem não o definem como um ser estático, mas sim como um ser sempre projetado, o espaço aberto, espaço esse constitutivo da liberdade em suas múltiplas escolhas, ou seja, o futuro, evidencia o campo de possibilidades nunca definidas, nunca concretizadas, a continuidade da vida como fluxo de projetos a se realizarem como significação provisória.  Assim, podemos pensar os desenhos de Felipe Stefani nas suas dimensões estéticas em três planos analíticos: assimetria, esboço como forma inconclusa e espaço de projeção.

Desenho: Felipe Stefani

Assimetria

Tendo a ação humana como realização de seu intento a possibilidade ou não de concretização, transposta para o âmbito da arte como subjetividade criadora, seus traços, simbolicamente representados como projeções, só podem ter a assimetria como apreensão do movimento intencional característico do humano em sua manifestação.

Esboço como forma inconclusa

A possibilidade de concretização da ação humana revela o projeto como significação, como instaurador de sentido, mas sendo possibilidade, só pode manifestar o esboço em seu anseio de realização, ou seja, sua forma inconclusa porque não determinada.

Espaço de projeção

Apreender a ação humana em seu intento e simultaneamente mostrar toda a dimensão provisória de sua realização, toda a possibilidade ou não de concretização de seus anseios, revela a principal característica do homem: a liberdade. A liberdade como dimensão definidora do homem, como sua essência, só pode ser percebida nos desenhos de Felipe Stefani se prestarmos atenção na relação estrutural, semântica existente entre os seus desenhos e a folha branca, que se apresenta como espaço de projeção. Seus desenhos parecem nascer, brotar da folha branca como um sentido a clamar pelo homem.

A estética de Felipe Stefani ecoa as palavras do poeta Murilo Mendes: “O homem é um ser futuro. Um dia seremos visíveis.”

Desenho: Felipe Stefani

(Hilton Valeriano é professor de filosofia. Edita o blog Poesia Diversa)

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3 Comentários

  1. Parabéns, HILTON VALERIANO, pelo excelente e elucidativo texto, o qual nos permite haurir com mais clareza as intenções éticas e estéticas dos desenhos do artista FELIPE STEFANI. Entretanto, com o objetivo de inaugurar um diálogo produtivo com você, permita-me dizer-lhe que, pelo menos de minha perspectiva (a psicanalítica), seria possível ler os desenhos de STEFANI como se os mesmos exprimissem “figuras beckettianas” (refiro-me a SAMUEL BECKETT [1906 – 1989]), ou seja, personagens que, embora descarnados e despossuídos de quaisquer bens materiais (trata-se em geral de “mendigos”), resistem e sobrevivem ao sem-sentido da existência, quer balbuciando fragmentos de palavras e de frases, quer estendendo angustiadamente seus corpos em movimentos aleatórios no interior/exterior de um espaço vazio. Todavia, como você sabe, HILTON, há sempre em BECKETT um “esperando Godot”, qual seja, mesmo nas situações de extremo nonsense, os personagens estendem seus braços, pernas e mãos (ainda que através de um gestual quase imperceptível) para o “pequeno Deus” (“Godot”)… – Os braços estendidos das figuras de STEFANI, em direção ao “vazio” mas como que tentando “pegar ou apontar algo”, lembraram-me muito determinados posicionamentos dos personagens de BECKETT. Assim, talvez haja nos belos desenhos de STEFANI também um “morrer das coisas”, mas esperançoso (este “morrer”) de que é possível “apontar ou pegar algo” – e o que seria este “algo”?; bem, não encontro outra palavra e/ou outra significação senão esta: “Deus” (ou, como prefere BECKETT, “Godot”). Abraços: JOSÉ MARCUS DE CASTRO MATTOS (Poeta. Psicanalista-lacaniano). Rio de Janeiro. PS: Muito importante a passagem de MURILO MENDES,destacada por você. A passagem relê o célebre “O homem é um ser-para-a-morte”, de HEIDEGGER, acrescentando aí o futuro, e, pois, a esperança…

  2. Prezado José Marcus De Castro Mattos, seu comentário foi extremamente pertinente…penso que minha modesta contribuição quanto à qualidade artística dos desenhos de Felipe Stefani tenha realizado seu objetivo: propor a reflexão sobre uma obra autêntica! Meu ensaio é passível de questionamento, pois toda análise se baseia em pressupostos teóricos…gostei muito de sua perspectiva, apesar de infelizmente ser ignorante quando aos grandes autores que você citou! Recomendo que desenvolva essa análise!

  3. Hilton Valeriano conhece muito bem a obra de Felipe Stefani, por isso esse texto tão breve e lúcido.
    O homem nú de Stefani mente menos. Nós que convivemos intensamente com a obra de Felipe, nos acostumamos expressão corporal atormentada de seus personagens. O homem de nosso tempo, seguindo a trajetória proposta por Nietzche. Personagens que dialogam com nossa angústia frente ao absurdo. O indivíduo muitas vezes só, no vazio existêncial da folha à ser preenchida. A batalha diante de Deus, a opção de não dar o “salto” proposto por Camus.
    Os desenhos de Felipe nos falam de nossas incertezas. Em um momento em que muitos recorrem as abstrações, os personagens de Felipe apenas se despem, para nos dizer do mais importante em nossa exigua existência. Nos dizer de nossa insignificância; de nosso desespero frente ao que nos cabe como verdade … De nosso incompleto e incoerência.

    Embora não tenha lido as obras de Beckett, considero oportunas as observações realizadas por José Marcus de Castro.

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