Olhares

Retrato do artista em virtuosa busca

Por Fabrício Brandão

 

Arte: Marcantonio

 

Se indagado sobre as razões que movem seu ofício, um artista poderá ofertar como resposta toda a gama de sensações advindas dos seus percursos pessoais. Mais do que isso, usará dos dotes complexos do oceano da subjetividade para dar vazão ao que fundamentalmente alimenta seus caminhos de criador. Mas o que é, então, a arte se não a soma de todas as variáveis contidas no âmago de cada ser?

Sem didatismo, podemos evidenciar, sobretudo, uma espécie de revolução que parte de dentro para fora. E não se trata de um mero ato de expelir visões íntimas da existência, mas principalmente de externar ao mundo um componente possível de transformação. É, na verdade, um fluxo cujo dinamismo opera efeitos consideráveis sob o ponto de vista que harmoniza ação e pensamento. Assim, materializar em obras uma multiplicidade de sentimentos, implica também num ritual de inconformismo perene, especialmente marcado pela ruptura com a passividade estética.

Um artista motivado pelos cenários de seu tempo acaba por gerar um resultado fortemente efetivo quando a questão é retratar o mundo sobre o qual põe verdadeiramente os seus pés. Transitando pelo hiato de aproximações entre o vivido e o inventado, o criador apresenta suas versões para tudo aquilo que explode ao seu redor. Nessa esteira de sensações, trajetórias como as de Marcantonio servem como parâmetro valioso de constatação de que a vida ganha mais consistência ao afugentarmos verdades imutáveis. E não são poucas as argumentações que podemos utilizar para considerar tamanha epifania artística.

De forma substancial, há três eixos fundamentais que permeiam a sólida obra de Marcantonio. O primeiro deles reside no importante trabalho de observação de um fenômeno que assola indistintamente nossos estratos sociais: a violência urbana. Tomado pelos efeitos gerados por tragédias como as da chacina da Candelária e de Vigário Geral, ambas situadas no Rio de Janeiro, sua terra natal, o artista transpõe para suas telas as pungentes marcas assinaladas nas páginas dos noticiários. A série, intitulada “O avesso do jornal”, ousa tocar em feridas que compõe um delicado painel de nossa duradoura perplexidade social.

Ao passo que a linha do tempo desenrola seus ímpetos, Marcantonio se depara com a necessidade de buscar novos rumos para suas criações. É então que surge o segundo eixo importante em suas andanças, a série “O julgamento de Páris”. Marcada por elementos da mitologia grega, essa coletânea de telas intenta uma representação erótica do corpo feminino. Diga-se de passagem, é possível notar que tais trabalhos apontam também para uma aspiração libertária da mulher, conciliando vigorosamente força e delicadeza.

Arte: Marcantonio

O terceiro eixo é, segundo o que o próprio artista confessa, uma espécie de ápice de sua busca. Vivenciando o gosto de uma maturidade no nível da linguagem e da elaboração conceitual, Marcantonio traz à tona a série “Melancolia”, a qual explora essencialmente as perspectivas da liberdade de representação. Mesmo tendo atingido um sentido de unidade a partir desse conjunto de trabalhos, o artista rechaça qualquer condição de uniformização dos caminhos, deixando abertas as possibilidades de adesão às transformações futuras. Com isso, exalta o dinamismo sobre o qual se funda uma verdadeira obra de arte.

Na percepção constante de que nunca estamos inteiramente prontos, é que alongamos os dias pela terra. Quiçá o desvencilhar das facilidades sedutoras ofertadas no meio do caminho seja artifício a se ter na boa medida do equilíbrio. Ao que tudo indica, há quem nos dê indícios de tamanha lucidez. Negando a rapidez ilusória dos atalhos, é válido testemunhar as epifanias pretendidas a partir de um ser espantado como Marcantonio.

Arte: Marcantonio

 

 

* As telas de Marcantonio são parte integrante da galeria e dos textos da 91ª Leva.

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3 Comentários

  1. Achei o texto excelente. E apreciei muito a introdução sobre a psicologia e as motivações do artista. Agradeço a visão positiva sobre o meu trabalho. Por fim, gostaria de expressar o quanto me agradou ser definido como ser espantado: é isso, o que mais me move é o espanto e a perplexidade, sempre renovados diante da realidade e da arte. Agradecimentos ao autor, Fabrício Brandão.

    Um abraço.

  2. Belíssimo olhar sob a arte de Marcantonio! Gostei demais da resenha e da arte que se encontra por aqui.

    Um abraço.
    Luiza

  3. Fabrício, não sei se gostei mais do seu texto ou das imagens. Mas falando do seu texto e de todo o seu trabalho na DA, me lembro de Affonso Romano de Sant’Anna que me disse que, quando lhe conheceu, pensava que você fosse fruto da minha imaginação. Cada vez que lhe leio vejo o quão real, surreal e irreal é Fabrício Brandão.
    A primeira imagem me lembra um amparo na dor. Achei fantástica! A terceira lembra uma galáxia de flores. Muito bonita!!! Parabéns para Marcantonio.
    Abraços muitos.

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