Olhares

Desenho: Rui Cavaleiro

 

 

A APREENSÃO DO MUNDO EM SENTIMENTOS VIVIDOS

Por Hilton Valeriano

 

“O óbvio é tão somente o resultado da cegueira ocasionada pelo desenraizamento poético do mundo.”

Em toda arte autêntica, a realidade não deve ser mostrada, e sim transfigurada em sua representação. Poderíamos dizer que o mundo do artista deve ser manifesto, e a possibilidade de desvelamento desse mundo encontra-se na representação de sua subjetividade, fonte essa, paradigmática de sua criação. Mas não podemos esquecer o centro de referência dessa subjetividade, que paradoxalmente deve ser a realidade, mas transfigurada, e por isso, compreendida como arte. Assim, o óbvio é tão somente o resultado da cegueira ocasionada pelo desenraizamento poético do mundo. A arte evita, ou se contrapõe a esse desenraizamento, ao imediatismo estéril de uma visão pragmática quando se constitui como fonte para o “olhar” apreensivo de dimensões simbólicas, porque humanas, e, portanto significativas da realidade como dimensão existencial.   No livro O discípulo de Emaús, o poeta Murilo Mendes diz:

A realidade deve ser pouco a pouco domada, até ser captada pelo lirismo – para que se opere sua transformação, e elevação ao plano do espírito. Assim se forma a criação artística.”

Podemos encontrar a ressonância das palavras do grande poeta mineiro nos desenhos de Rui Cavaleiro Azevedo, o Ruaz, desenhista de Lisboa, Portugal. Sua obra compõe o exemplo de uma arte autêntica em seus princípios. Traços de uma figuração expressionista, cuja representação artística revela uma imagética dos sentimentos.

Desenho: Rui Cavaleiro

Ante sua obra, que versa sobre diversos planos do cotidiano, paisagens, retratos de figuras anônimas ou personagens de grandes obras literárias como Moby Dick, de Melville, ou Dom Quixote, de Cervantes, ou mesmo em representações do poeta Fernando Pessoa, somos convidados como expectadores, a integrar suas cenas, pelo núcleo humano que as alimenta, ou seja, a subjetividade de seu criador. Subjetividade marcada – esteticamente – pela transfiguração de uma vivência poética do mundo circundante e suas significações.

Olhar e ver que o sentido que habita o mundo é sempre criação, ou seja, intencionalidade semântica, projeção de um ser que instaura sua existência como dimensão cultural. Olhar e ver que os sentimentos, projetos, ações presentes no mundo podem ser apreendidos e propostos como diálogo intersubjetivo. Olhar e ver os desenhos desse artista da terra das caravanas e ser, sobretudo, comovido por uma poética humanista.

Cito novamente Murilo Mendes:

“O homem terá que fazer tudo desde o princípio; deverá antes de mais nada redescobrir o sentimento.”

E concluo:

Ruaz: apreensão do mundo em sentimentos vividos.

 

 

Desenho: Rui Cavaleiro

 

 

(Hilton Valeriano é professor de filosofia. Edita o blog Poesia Diversa).

 

 

 

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9 Comentários

  1. Uma grande honra estar aqui novamente, nobre amigo Fabrício! E podendo colaborar (um pouquinho) com a divulgação desse artista, o Rui…amigo da terra das Caravelas! Um abraço fraterno!

  2. Errata: “caravanas”= “caravelas”!

  3. Muito bom artigo. Hilton escreve com sagacidade e precisão! Belo !

  4. Alguém já disse que arte é a realidade vista de um temperamento. Muito bom o seu trabalho, Hilton. O que v. mostra aqui e o que vem fazendo pela poesia, numa luta que ruma para se ombrear com a do Fabrício Brandão, Nilto Maciel e Soares Feitosa.

    W. J. Solha

  5. Obrigado! Palvras de autênticos escritores como Solha e Edir Pina de Barros…um sentimento de realização!

  6. Hilton,

    Vocë lança um olhar renovado sobre os meus desenhos. Pode refazê-los com as suas palavras, está autorizado. Será arte escrita sobre riscos e traços.

    Um abraço

    Ruaz

  7. “Arte escrita sobre riscos e traços”. Obrigado, nobre amigo!

  8. Adoro suas análises existencialistas a respeito da vivência e o fenômeno dos artistas e da arte. Está de parabéns, é um crítico que realça a potencialidade de grandes artistas. Grande beijo!

  9. Tem razão de sobra, Hilton. O traço do Rui Cavaleiro é mais que a poesia e a ventura desenhadas – é o bom sonho desenhado – como aqueles sonhos que ao despertar lamentamos ter despertado.

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